Que método utilizar no ensino do basquetebol? - por Mário Silva e Filipe Talaia


Importância da escolha do método…

 “O complexo não pode ser aprendido analiticamente, é necessário fazer interagir num contexto unificado onde se estabeleçam iterações entre todos os aspectos que têm influência significativa na optimização do desportista humano” (Vargas, 2017).

Figura 1: Esquema básico da mudança de perspetiva do processo de treino (Pol, 2018).

 

Basquetebol como um sistema complexo

 Antes de tentarmos abordar o tema das metodologias sistémicas e pedagogias não lineares, centremo-nos em definir três conceitos essenciais. São eles o conceito de sistema, estrutura e conduta motora.

Um sistema define-se como um todo complexo interativo, constituído por componentes que interagem, no qual a sua dinâmica é modificada quando se verifica uma modificação das suas componentes constituintes (Otero & Burgués, 2003).

Uma estrutura é a organização não visível do sistema, ou seja, um modo peculiar de relacionar as componentes desse sistema (Otero & Burgués, 2003). Estas estruturas são essenciais para que seja possível fazer emergir as ações motoras, que são o resultado visível do sistema. Entende-se por conduta motora, a resposta motora de cada pessoa em interação prática com o contexto, englobando a dimensão cognitiva, afetiva e social (Otero & Burgués, 2003)

A partir de agora, será fácil perceber o jogo de basquetebol como sistema aberto, complexo e dinâmico, dotado de uma estrutura (regulamento de prática) e dispõe de uma lógica interna, ou seja, um conjunto de relações entre componentes (tempo, espaço, número de jogadores, normas de regulamento) e consequências práticas. Essa mesma lógica interna muda, se as regras se modificarem, conduzindo à adaptação nas condutas motoras dos praticantes.

 

Evolução dos métodos

Tabela 1:

Paradigma Tradicional e Paradigma da Complexidade (Vargas, 2017).


Paradigma tradicional

O estudo do desporto e das suas modalidades desportivas tem assistido a uma tensão entre a teoria cartesiana (separação dos fatores de treino) e o holismo (integração e relação de todos os fatores de treino).

Como parte do sistema de relações humanas, os jogos desportivos coletivos viram os seus métodos de treino seguir metodologias fracionadas, onde se verificava a separação dos fatores de rendimento, onde os treinadores orientavam o seu trabalho para uma determinada dimensão (ex. preparação física, na pré-época) em detrimento das demais (Reis, 2018). Estes métodos orientavam-se sob o paradigma da simplificação, resultantes das teorias mecanicistas provenientes das ideologias pós-revolução industrial. Estas teorias foram muito efetivas nos desportos individuais, mas desadaptadas à lógica dos desportos coletivos. Este paradigma linear não contemplava a complexidade presente jogos desportivos coletivos, visíveis nas interações dinâmicas e por vezes inesperadas, em parte desconhecidas e sem possibilidade de reprodução.

Paradigma da complexidade

O chamado paradigma da complexidade tem a sua origem na distinta interpretação dos seres vivos, da natureza e dos fenómenos sociais. Este novo paradigma provém de ciências do gestaltismo, o cognitivismo e o estruturalismo e tem como pilares outras ciências, como a cibernética, a biologia, a genética e a teoria de sistemas.

A metodologia “Periodização Tática” pelo Professor Vítor Frade (Portugal, Porto) e “Treino Estruturado” pelo Professor Paco Seiru-lo (Espanha, Barcelona) são dois exemplos atuais de metodologias que se regem pelo paradigma da complexidade (Reis, 2018; Vargas, 2017).

Segundo o paradigma da complexidade ou abordagens sistémicas, estas abordagens propõem uma prática flexível, sem um controlo rígido, que permita aos intervenientes a auto-organização, aceitando a incerteza, a instabilidade e as turbulências como rasgos diferenciadores, do contexto específico dos jogos desportivos coletivos. A ordem e a desordem são transições necessárias para compreender o próprio contexto em que os praticantes se inserem.

O paradigma sistémico e o treino

O praticante e o seu desenvolvimento como Humano Desportista é o objetivo prioritário do treino. Como tal, é essencial que se perceba que é importante que o treino de basquetebol seja desenhado para proporcionar situações de prática variada e que estas tenham uma prioridade funcional, não só para o desenvolvimento do praticante, mas também para a forma como se pretende que a equipa se manifeste em jogo.

As sequências práticas e os conteúdos das interações nos treinos não podem atender exclusivamente aos interesses do treinador, influídos pela sua formação e interpretação pessoal do desporto.

As sequências práticas devem sim ser abertas e qualitativas, personalizadas a um determinado jogador e com ele negociados, tendo em conta o momento da sua vida desportiva.

Como tal, as práticas deverão ser executadas em grupo (unidade funcional base 1x1) para que se deem as condições específicas do Jogo que se pratica e nelas contenham alternativas de situações de complexidade adequadas. Contudo, a prática em si não faz necessariamente a perfeição.

Uma prática ineficiente torna as coisas ainda piores, apenas uma prática intensiva (ou deliberada) torna as coisas melhores.

A prática deliberada tem de exigir concentração, sobre o que se está a fazer em cada momento. Além disso, requer que o treino seja composto por muitas oportunidades para os praticantes lerem, adquirirem compreensão e escreverem as suas próprias soluções, tendo por base o que está a acontecer no campo.

Por fim, a prática intensiva/deliberada, envolve o treino da reação e tomada de decisão. Os treinos deverão ser momentos em que deve ser exigido esforço pessoal (sem atalhos), velocidade (realização com rapidez) e envolvimento total de todos os presentes (todos os trabalhos e papeis são importantes).

Assim, uma instrução eficiente e uma prática com significado poderão gerar maior eficiência de aprendizagem em minutos. Claro, que nem sempre isso acontece, mas torna mais acessível a mais gente a aprendizagem de “skills” e em menos tempo. O volume de treino por si não garante que existirão melhorias, será necessário incluir variabilidade no treino.

As repetições são apenas chaves para o progresso se o praticante repete de forma consistente e consciente, com a intenção de melhorar. Caso contrário, pode mesmo acontecer que maior número de repetições promovam uma diminuição da performance ou a assimilação de padrões motores errados.

Treinar duro é fácil, treinar de forma inteligente é mais desafiador, treinar duro inteligentemente é o maior desafio de todos.

A pergunta a fazer é “Como é que eu treino melhor?” (Corre, 2019).

Torna-se assim evidente que os treinadores têm de ser encorajados a fazer as suas próprias práticas adaptadas aos respetivos envolvimentos, com diferente número de praticantes e diferente nível de prática.

É também agora evidente, que as práticas devem incluir propostas com “motivos para ação” e que obriguem à resolução de problemas, fazendo emergir a aprendizagem.

Desta forma, a competência do treinador começará no desenho do ambiente de prática, sabendo que constrangimentos deve manipular, quando aumentar ou diminuir os níveis de complexidade, e como intervir quer de forma implícita, quer de forma explícita.

Estes convites ou motivos para a ação deverão ser ajustados. Colocar praticantes inexperientes em situações de 5x5 ou 4x4 pode ser contraproducente, pois a complexidade será superior à sua capacidade para reagir às pistas presentes nesse contexto de prática.

A prática deve ser concebida de modo ter nela muitos motivos e oportunidades para a ação. O treinador terá uma ideia se a prática foi efetiva no seu objetivo, se os praticantes que desempenham a ação conseguem ser eficazes e no que lhes é pedido (ex. se o passe é realizado e encontra o companheiro ou não).

A prática tem de ter em consideração a forma como o praticante se sente, enquanto realiza a sua performance. Tem de tentar perceber como será mais confortável a realização do “skill” num ambiente “caótico” e de que forma sente que a intensidade de realização (fluidez durante a interação) melhorou.

Figura 2: Modelo de constrangimentos inter-atuantes de Newell 1986 (Renshaw, 2019)


“O treinador deve evitar que o medo domine o jogador. O medo é um fator limitante do progresso do jogador” (Paco Seiru-lo cit. in Serra, 2020).

Equipas treinadas por treinadores que adotam uma metodologia de treino suportada pelas ciências da complexidade organiza a sua forma de jogar, não só para proteger o seu cesto, mas também para serem capazes de “agredir” o cesto contrário. Isto resulta de princípios táticos atualizados e adaptados, que ensinam os praticantes a adaptarem-se ao contexto, a assumirem riscos e a serem capazes de antecipar e interpretar os erros acontecidos como oportunidades, que surgem por vezes de forma imprevista.


Discussão - Que método utilizar no ensino do basquetebol?

Os aspetos básicos da metodologia nos desportos de equipa têm evoluído muito com o tempo e o basquetebol não foge á regra. Estamos a assistir a uma transição de paradigmas que alteram radicalmente a compreensão que tínhamos do jogo e do treino.

Cada vez mais, o desafio dos treinadores passa pelo entendimento dos múltiplos contributos das ciências, com destaque para as neurociências, ao treino.

O conceito de método de treino consiste na ordenação do processo, delimitando até onde queremos chegar e sobretudo traçando todo o caminho que queremos seguir.

Conhecer os vários processos de aprendizagem dos jogadores é uma necessidade premente de quem dirige o treino. É tempo também para os treinadores modificarem a sua forma de ver o jogo, desaprendendo métodos e costumes do passado.

É sabido que as verdades absolutas não levam em conta o contexto em que nos encontramos e não ajudam a resolver os problemas. O que faz mesmo sentido é questionar os paradigmas.

Palavras como contexto, caos, sistemas complexos são hoje comuns entre os treinadores e a ajudam a explicar o treino.

O método de treino escolhido é a base a partir da qual tudo se constrói o ensino e que nos define como treinadores. Não só define os objetivos, como também a forma como queremos chegar a eles.

Na modalidade de basquetebol, os elementos imprevisibilidade ou incerteza predominam. Assim, o treino deve comtemplar a incerteza, a variabilidade e a antecipação nas respostas.

Da mesma forma, compete ao treinador encontrar uma linguagem acessível, para que todos o entendam e que o método se possa aplicar.

No passado, e não só, os métodos de treino tinham como referência os desportos individuais, que hoje se sabe não podem ser linearmente aplicados a modalidades de deportos de invasão e interação (cooperação e oposição) como o basquetebol.

Os modelos tradicionais caracterizavam-se pela ideia de que a soma das partes era igual ao todo. Partiam de modelos analíticos onde o domínio das diferentes habilidades era somado ao trabalho tático, ao físico e ao psicológico, sem levar em conta o contexto de prática e de jogo.

Os métodos de treino eram baseados em princípios e progressões imutáveis e inadaptadas ao individuo, ao basquetebol e ao ambiente.

O basquetebolista era assim um sujeito passivo, no processo de aprendizagem, onde o treinador tinha todo o conhecimento e que em muitas ocasiões limitava a capacidade do jogador para aprender e experimentar coisas novas. Nestes modelos, o treinador é o proprietário do conhecimento, não deixando espaço livre à espontaneidade necessária, para o jogador dar resposta às necessidades competitivas do jogo.

Obviamente, tal forma de aprender levava ao medo de errar e promovia a formação de jogadores muito previsíveis.

Não adianta seguir os modelos tradicionais, analíticos e compartimentados promovendo soluções idílicas.

Como tudo está interligado, os métodos onde o treino está compartimentado, estanque e sem ligações, pouco a pouco vai ficando de lado.

A aprendizagem não pode, pois, ser um processo linear, já que os jogadores não treinam para treinar, mas sim para jogar. As propostas práticas têm de melhorar o jogador em jogo e não na realização de exercícios.

Com o novo paradigma sistémico, o todo vai além da soma das partes, ao contrário do modelo tradicional.

O denominado Treino Sistémico não estimula só a parte tática de forma separada, mas também a física, a técnica e a emocional.

O jogador é a unidade funcional onde os seus conhecimentos técnicos, táticos, estratégicos, capacidade física, … não estão isolados, mas sim interrelacionados. Isto faz com que, por exemplo, o conhecimento técnico para se desenvolver necessite do desenvolvimento do conhecimento tático. Da mesma forma, também poderá acontecer que limitações ao nível do conhecimento tático condicionem o desenvolvimento técnico. 

O jogador é um sujeito ativo na sua aprendizagem, apoiado pelo treinador que o guia no processo, mas que não o limita na aprendizagem.

O treinador deve dominar o modelo de treino sistémico e saber como o aplicar no treino diário, incorporando os elementos fundamentais, para que se produzam aprendizagens significativas.

Ao aplicar este método, a tarefa do treinador é fazer os atletas pensar. Para isso, o treino tem de satisfazer esta ideia, o que não se consegue com tarefas demasiado guiadas, sem ter em conta a incerteza e a imprevisibilidade própria do jogo.

No basquetebol como desporto de invasão e interação estabelecem-se continuamente interações entre companheiros e adversários, que se traduzem em relações que possibilitam a resposta adequada aos problemas colocados pela defesa. O que parece básico é na verdade o mais difícil: ensinar os jogadores a relacionarem-se.

Com este método, pretendemos que o jogador esteja preparado para as propostas da defesa, mantendo a concentração, de forma a conseguir antecipar-se. Procuramos que os jogadores sejam autónomos, pensem por si mesmo e que descubram novas soluções.

Com liberdade para o jogador, qual é o papel do treinador?

É sabido que quem joga são os jogadores, mas o treinador continua a ter um papel muito importante ao ensinar a jogar. Cria contextos nas tarefas, de forma a facilitar a aparição das respostas, que queremos que aconteçam. Tal só é possível se o treinador tiver um conhecimento profundo do jogo, para conseguir ser o guia do processo e o facilitador do mesmo.

Ao treinador compete criar contextos no treino, que simulem as necessidades competitivas e que ajudem a criar as suficientes interações intra (consigo mesmo) e inter (com companheiros e adversários).

É necessário a variabilidade não só nas tarefas ou movimentos do jogo, mas também no método a aplicar.

Neste enquadramento, percecionar, analisar, decidir e executar são vetores muito importantes, tal como o tempo, já que tudo tem de ser feito no tempo certo.

Os jogadores devem reagir rápido, tornando as decisões pensadas em automáticas, e isto é possível com boas repetições.

Não é fácil mudar as rotinas estabelecidas, ao longo dos anos, com aparente perda de controlo do treinador sobre o processo de aprendizagem.

Muitos aplicam agora uma metodologia mista, mantendo os procedimentos, tarefas, avaliação e controlo sobre o jogador, modificando apenas parcialmente o seu próprio comportamento e a terminologia utilizada.

Resumindo, no Método Sistémico que comtempla conceitos psicológicos, emocionais e neurocientíficos, temos treinos:

  • Presença constante de situações representativas do jogo;
  • Focados na tática (posição da bola, posicionamento dos jogadores, trajetórias, orientação corporal e ação motora, que permita que a bola se expresse no seu máximo);
  • Priorizando o desenvolvimento cognitivo;
  • Com alto nível de motivação por parte dos participantes;
  • Focados no estímulo às tomadas de decisão;
  • Procurando a evolução dos componentes do jogo de forma conjunta (técnico, tático, físico e emocional),
  • Satisfaz o desejo de jogar do praticante;


O treinador atual não tem de ser neurólogo, psicólogo, fisiólogo, mas simplesmente um treinador sensibilizado para a necessidade de dar mais importância às emoções no treino do basquetebol, procurando encontrar uma resposta da tomada das decisões fundamentada na teoria da complexidade, descobrindo e aplicando o método que permita otimizar o trabalho do treinador.

Finalizando, a metodologia a aplicar deverá assentar em 4 princípios:

  1. Desenho representativo – a sessão prática tem de ser realista, assegurando que os praticantes realizam a sua prática num ambiente que reflete o que vão experienciar em contexto competitivo;
  2. Oportunidades para a ação – a sessão prática tem de ser rica em oportunidades presentes no seu envolvimento, para que os praticantes reajam de acordo com o objetivo do treino;
  3. Intencionalidade – A sessão prática tem de ter intencionalidade, referindo-se ao propósito a alcançar com a prática, na busca por uma coordenação ou adaptação de comportamentos;
  4. Repetição sem repetição - A prática tem de contemplar este princípio, referindo-se à quantidade de diferentes possibilidades de soluções para os problemas criados pelo envolvimento.

Estes princípios permitirão ao treinador compreender qual o valor dessa sessão prática.

por Mário Silva e Filipe Talaia

25-03-2021


Bibliografia

(Damunt & Guerrero, 2021)

Corre, E. (2019). The practice of Natural Movement: Reclaim Power, Health, and Freedom. Canada: Victory Belt Publishing Inc.

Damunt, X., & Guerrero, I. (2021). El Entrenamiento Sistémico basado en las Emociones: propuesta para la optimizacón del jugador en el fútbol formativo. Barcelona, Espanha: Futbol de Libro.

Otero, F., & Burgués, P. (2003). Introducción a la praxiologia motriz. Badalona, Espanha: Paidotribo.

Perez, G. (2019). Paradigma Sistémico en el Entrenamiento. Retrieved March 23, 2021, from https://www.facebook.com/gabriel.loaizaperez.9/posts/2655045631217723

Pol, R. (2018). La Preparación ¿Física? en el fútbol (11o Edició). Vigo, Espanha: Editorial Librería Deportiva Futbol.

Reis, J. (2018). Periodización Táctica by Vitor Frade. La sustentabilidade del morfociclo patrón: La “Célula Madre” de la Periodización Táctica. Vigo, Espanha: Editorial Librería Deportiva Futbol.

Renshaw, I. (2019). The Constraints-Led Approach: Principles for Sports Coaching and Practice Design. New York: Routledge.

Serra, A. (2020). Espacios de Fase: Como Paco Seiru-lo cambió la táctica para siempre. Vigo, Espanha: Editorial Librería Deportiva Futbol.

Vargas, F. (2017). El Entrenamiento en los deportes de equipo. Barcelona: Biocorp Europa.

 

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