Cenários de aprendizagem – por Mário Silva e Filipe Talaia

“Da rua se fez

O que muitos jogam

Faz apelo à rua outra vez

Vais ver que os talentos sobram” 

(Frade, 2014, p. 97)

 


Os exercícios…

“Os exercícios são o nosso canal de comunicação direto com o desportista para interagir, modificar esquemas motores, cognitivos, condicionais, mudar comportamentos e em definitivo, conformar o processo de otimização dos desportistas” – Richi Serrés Lara (Vargas, 2017, p. 192).

Ao construir as suas sessões práticas, os treinadores devem ter em atenção os seguintes passos (Renshaw, 2019):

1. Definir claramente a intenção. Se a intenção é melhorar a capacidade tática para pressionar o adversário, então o ambiente do treino tem de ser desenhado para permitir que tal aconteça;

2. Manipulação dos constrangimentos. Usando o mesmo exemplo, a manipulação de constrangimentos deve encorajar os praticantes a pressionar alto. É importante que a prática seja realista;

3. Não abusar do excesso de constrangimentos, permitir que os praticantes sejam encorajados a criar os constrangimentos para se auto-organizarem. Isto permitirá que o comportamento padrão surja. Isto acontece porque é essencial que os praticantes compreendam quando e como usar “os motivos para a ação”.

“Os desportistas podem aprender escutando, observando, falando, mas, sobre tudo e necessariamente, aprendem fazendo” – Xesco Espar (Vargas, 2017)

Os exercícios são a chave para modificar o desportista, por isso, é de vital importância a sua seleção e escolha. Como tal, em primeiro lugar, o processo de seleção e escolha deve ter em consideração as necessidades de desenvolvimento do desportista.

 

O que é um exercício?

Um exercício é uma “situação simuladora do contexto competitivo, que o treinador manipula para facilitar ou sobre estimular o limite de desempenho do praticante, dando preferência aos aspetos que interessam desenvolver nesse momento” (Vargas, 2017, p. 196).

Perante esta definição é essencial que o treinador seja capaz de determinar qual o “limite de desempenho” dos praticantes com quem trabalha. Deverá ter bem presente o conceito de dificuldade e identificá-la no contexto onde intervém. Mais, deverá conhecer bem as possibilidades de manipulação dos fatores responsáveis por essa dificuldade (Vargas, 2017, p. 197).


No que consiste a dificuldade do exercício?

Dificuldade é a relação que existe entre a habilidade ou a capacidade percebida por parte do praticante e o nível de desafio que está presente no exercício. Claro está que esta relação é diferente de praticante para praticante. Além disso, esta relação é dinâmica ao longo do tempo, levando à necessidade de adaptação dos exercícios às necessidades promovidas pela evolução dos praticantes.

Os treinadores serão responsáveis por construir exercícios desafiadores, mas tendo em tendo em consideração o nível de competência dos praticantes.


Figura 1: Gráfico “Finding Flow” proposto por Czikszentmihalyi (1998).

Através da figura acima, compreende-se então que é imperativo estabelecer um nível de desafio adequado, de modo que este funcione como “combustível” para o estado emocional ótimo do praticante e para a sua autoestima. Incompetência ao definir o nível de desafio provocará frustração ou desmotivação no praticante.

Passos para desenhar exercícios

1º Passo: Mais do que “Porquê?”, pergunta “Para quê?”

Esta pergunta é essencial para estabelecer o objetivo que pretendes que os jogadores atinjam no treino.

2ª Passo: De seguida, define o objetivo (ataque, defesa), selecionando depois o conteúdo a praticar (conduta técnico-tática, ou conduta tática-técnica).

3ª Passo: Por fim, o desenho e organização do exercício, que deverá ser composto no máximo por 3 regras ou normas, tornando possível ao jogador perceber qual é o objetivo que tem de conseguir, como tem de fazê-lo, quando termina o exercício e como recomeça (Ruiz, 2018).

Figura 2: Parâmetros que condicionam o grau de incerteza dos exercícios (Velez, 2021, p. 18).

Dicas práticas

Seguem-se algumas dicas práticas que ajudam os treinadores a desenhar melhores propostas práticas (Ruiz, 2018, pp. 103–104):

  • Desenhar propostas rápidas e que promovam a viagem do simples para o complexo;
  • Em treino, começar por realizar poucas propostas e fáceis;
  • As propostas devem ser imprevisíveis e conter incerteza, levando os praticantes a pensar sobre o que estão a fazer;
  • Observar primeiro (2 ou 3 repetições) e só corrigir depois de garantir que o praticante tem a perceção daquilo que está a fazer (2-3 detalhes por treino e previamente determinados);
  • Explica de forma clara e rápida;
  • Define 1 objetivo por proposta;
  • Foca-te num conteúdo;
  • Tem uma intervenção que melhore a conduta tática ou gesto técnico do praticante (observa a intenção com que praticam);
  • Quando o objetivo é desenvolver uma fase de jogo, inclui na proposta a fase imediatamente antes ou a seguir. Lembra-te que as transições fazem parte do jogo;
  • Condiciona o exercício, como “motivos para a ação” de modo que surjam as condutas motoras que pretendes;
  • Durante a prática, faz uso de elementos surpresa de modo a criar incerteza. Lembra-te de gerir essa incerteza em função nível de capacidade de adaptação dos praticantes;
  • Não dês nem o início nem a solução dos exercícios. Pensa bem, durante o jogo, também não sabes quando, como, onde e quem vai participar na ação;
  • Pensa no jogo como gerador de propostas práticas, como tal torna-as imprevisíveis, com incerteza, em que existe liberdade. Tal como no jogo, que os exercícios promovam situações em continuidade. 

Figura 3: Da reflexão à ação: criar cenários de aprendizagem (Velez, 2021, p. 36)

Discussão – Cenários de aprendizagem

Entende-se por cenário de aprendizagem o meio ambiente particular, onde os jogadores podem aprender conhecimentos do jogo, desenvolver ideias ou modificar a sua conduta.

A introdução realizada sobre tema dos cenários de aprendizagem, fica claro que o ensino do basquetebol pode e deve acontecer em cenários claramente diferenciados. A aprendizagem ocorre também noutros contextos, não só através da prática formal: treinos e jogos. Por exemplo, para os praticantes, jogar na rua ou prática informal e observar vídeos seus e de outros jogos, constituem-se também momentos ricos de aprendizagem.

A prática informal potência comportamentos espontâneos, livres e imprevisíveis. A rua é uma das principais fontes de captação de talentos motores. Estes praticantes ao interagirem criam e aperfeiçoam competências técnicas e táticas, mesmo sem contar com a presença do treinador. 

Nos contextos de treino, os treinadores têm a responsabilidade de fazer com que a experiência do jogo de rua também se realize. Os treinadores são responsáveis por desenhar cenários de aprendizagem que garantam experiências semelhantes às vividas na prática informal. Estas propostas deverão levar o praticante a experimentar coisas novas.

O medo de errar ou da penalização do treinador tem de ser retirado do treino, sendo que é este o principal obstáculo à aprendizagem. Errar tem de fazer parte do processo!

O basquetebol hoje compete não só com outros desportos, mas fundamentalmente com a realidade do século XXI, em que os jovens são chamados a tarefas que não lhes provocam fadiga física e mental. Se queremos competir com a tecnologia temos de criar cenários onde os jovens se sintam bem e com entusiasmo, curiosidade e intenção de praticar.

Além da prática informal, do treino, a competição também se constitui um cenário de aprendizagem rico. Neste contexto, exige-se que o treinador seja capaz de dominar as competências de comunicação orientadas aos objetivos propostos. A ação do treinador deve também ter em consideração princípios e conceitos de jogo praticados durante os treinos e fazer uso de uma pedagogia justa e que promova a melhoria motora e coordenação coletiva dos praticantes.

Claro está que ao treinador cabe o papel fundamental. Este terá de fazer com que o ir ao treino gere paixão, que incuta nos praticantes a vontade de aprender. O treinador deverá ser coerente para que os atletas evoluam e consolidem bons hábitos de jogo.

O treinador deverá ter conhecimento dos efeitos que pretende alcançar com cada exercício ou cenário de aprendizagem. Deverá ter em atenção que o mesmo exercício produz efeitos diferentes na aprendizagem dependendo do seu comportamento.

O treinador deverá estar atento à forma como se dirige aos seus atletas, a quantidade e qualidade da informação na explicação dos exercícios.

O treinador deverá ser capaz de promover uma prática que capte a atenção plena dos atletas, levando-os posteriormente os praticantes a refletir sobre o que estiveram a fazer.

O treinador tem de estar atento e verificar os comportamentos e intenções demonstradas pelos praticantes. Para que exista a possibilidade de correção, o treinador deverá perceber primeiro se o praticante está a executar de forma consciente. Somente depois de garantir que o praticante se apercebe do erro é que deverá promover a correção e desta forma o praticante adquirir novo conhecimento.

Figura 4: Cenários de aprendizagem (Perez, 2020, p. 1).

CENÁRIOS POSSIVEIS

 

Nos treinos…

 

Um cenário de aprendizagem é um contexto onde se pode aprender algo relacionado com o jogo.

Em contexto de treino, os atletas podem aprender, com ou sem o treinador, no treino e fora dele.

Num cenário de treino os exercícios ou tarefas do treino são as componentes da aprendizagem.

A qualidade das tarefas (exercícios) depende da adequação dos objetivos e dos conteúdos das propostas. Estas deverão promover o desafio justo, tendo em conta as competências dos praticantes, nem demasiado fáceis nem difíceis. O treinador tem de estar atento à reação emocional de cada praticante, perante o nível de dificuldade proposto.

A maioria dos treinadores tem grupos muito diferenciados, o que acrescenta complexidade à intervenção. Nestes grupos, uns praticantes sabem tudo, outros ainda não sabem nada, o que complica a escolha das componentes do treino.

 

Quais os critérios que determinam a qualidade das tarefas (exercícios)?

O grau de implicação cognitiva dos jovens diz claramente se a tarefa está ou não bem desenhada. Os exercícios devem potenciar o desenvolvimento das capacidades de perceção, atenção e decisão para que os comportamentos surjam e os praticantes sejam estimulados a tomar decisões simples e que aprendam a ser capazes de seguir as pistas dadas, distinguindo-as do ruído provocado pelos vários focos de estímulos simultâneos.

Figura 5: Cenários de aprendizagem (Perez, 2020, p. 2)

EXEMPLOS CENÁRIOS DE APRENDIZAGEM


CENÁRIOS DE APRENDIZAGEM (Sub-12)

Nas etapas anteriores, Sub-8 e Sub-10, os jovens já desenvolveram as habilidades genéricas e algumas habilidades específicas.

Por isso, estão aptos a participar em cenários de aprendizagem: mais complexos; a tomar decisões; a reagir e manipular as tarefas, dado o desenvolvimento motor muito mais avançado.

Modificar a dificuldade das tarefas (manipular as características: espaciais, temporais, motrizes)

Espaço:

  • Para os atacantes. Reduzir progressivamente os espaços
  • Atuar espaço amplo   
  • Reduzir espaço
  • Para os atacantes: reduzir espaço progressivamente
  • Para os defesas: aumentar progressivamente o espaço 

Tempo:

  • Reduzir progressivamente o tempo disponível para tomar decisões 

 

# COMBOIO /outro cone

Por exemplo, como podemos construir cenários de aprendizagem para facilitar o momento em que o jogador com bola ultrapassa o seu defensor (sendo que há requisitos que antecedem esta fase, como ter argumentos para ultrapassar o defensor), como é referenciado por Arbalejo (2019).

Para proporcionar o cenário em que o atacante ultrapassa o seu defensor e este está a recuperar, podemos colocar dois jogadores debaixo do cesto. Um deles, tem bola e escolhe driblar à volta de um dos cones e o outro jogador sem bola persegue-o (“comboio”) e, tendo caminho “aberto”, deve atacar o cesto.


Atacante e defensor COMBOIO.

Objetivos gerais:

  • Melhorar as habilidades motoras básicas;
  • Melhorar a coordenação geral;
  • Potenciar a capacidade para atender a diversos focos de estímulos de forma simultânea;
  • Melhora o ajuste espaço temporal.

Objetivos específicos:

  • Descobrir diferentes formas de enganar oponente driblando (fintas);
  • Melhorar as mudanças de ritmo durante o deslocamento em drible;
  • Melhorar a visão periférica;
  • Aprende a driblar com a maior amplitude visual possível;
  • Aprender o drible de posição em espaços reduzidos sem perder a orientação do cesto;
  • Aprender a identificar os espaços livres durante deslocamento em drible;
  • Aprende a importância da variabilidade na profundidade do drible (aproximação /afastamento) para conseguir uma vantagem posicional frente a um oponente próximo;
  • Aprender a obter vantagem posicional driblando nas fases de transição frente às ajudas e recuperação defensiva;
  • Melhorar o drible progressão em velocidade;
  • Aperfeiçoar diferentes tipos de finalização;
  • Aprender a dificultar a recuperação defensiva.


Para proporcionar diferentes lançamentos, podemos construir outro cenário. O exercício é idêntico, só que agora o Treinador tem dois cones na mão, uma laranja e outro azul, que correspondem a uma passada para o cesto (laranja) ou lançamento de meia distância (azul). A seguir pode trocar as cores, o critério, originando adaptação e mudança de conduta, pelo jogador com bola.

  • Treinador levanta 1 cone
  • Cone Laranja: Entrada, cesto
  • Cone Azul: lançamento exterior
  • Mudar critério
  • Trocar cores e objetivos
  • Obrigar a mudar a conduta

No mesmo exercício, podemos construir ainda mais um cenário. Neste caso, o defensor não persegue o driblador, mas terá que contornar da mesma forma (isto é, se o atacante contorna o cone por fora, o defensor também terá de contornar por fora e vice-versa) e agora simulamos em treino o ataque ao jogador que ajuda do lado contrário da bola ou em recuperação defensiva.


Atacante COMBOIO e defensor CONE CONTRÁRIO.

Conclusão

Ao construirmos cenários diferenciados, vamos obrigar a mudar o padrão de conduta do jogador, inibindo as respostas automatizadas, mecânicas. Ao proporcionarmos aos jogadores estímulos diferenciados, eles podem adaptar-se, responder de maneira diferente e, por isso, realizarmos um trabalho adaptativo. Descurar este tipo de estímulos / cenários e formas de treino adaptativo, estaremos a “semear” jogadores “acéfalos”, robôs. Pelo contrário, quando expomos os jogadores a cenários abertos a várias possibilidades e próximos da realidade do jogo, “colhemos” jogadores capazes de resolverem problemas, jogadores inteligentes.

Esperar que os jogadores leiam, sem lhes criar cenários em que treinem a leitura será o mesmo que esperar alguma coisa que nunca irá acontecer.


por Mário Silva e Filipe Talaia

2-4-2021

 

BIBLIOGRAFIA

Arbalejo, L., Capdevile, M., Cárdenas, D., Ciavattini, V., Pablo, B., & Alastrué, P. (2019). Curs Online d’Iniciació i Minibàsket. Fundación Aíto i Improve Basketball.

Csikszentmihalhi, M. (1998). Finding Flow. The Psychology of Engagement with Everyday Life. New York: Basic Books.

Frade, V. (2014). “Fora de Jogo” o tempo todo. S. João do Estoril: Prime Books.

Perez, G. (2020). Aquí os dejo el enlace de descarga con la explicación de la 3a Lección del Bloque de Metodología. Retrieved March 29, 2021, from https://www.facebook.com/gabriel.loaizaperez.9/posts/2734771843245101

Renshaw, I. (2019). The Constraints-Led Approach: Principles for Sports Coaching and Practice Design. New York: Routledge.

Ruiz, A. (2018). Qué ejercicios haces. Esto es Mini básquet. Barcelona: Editorial INDE.

Vargas, F. (2017). El Entrenamiento en los deportes de equipo. Barcelona: Biocorp Europa.

Velez, D. (2021). El desarrollo de las capacidades cognitivas que condicionam el comportamiento deportivo de los niños. In Comunicação apresentada no Seminario Internacioal: Desarrollo motor en minibasket. San Luiz, Argentina.


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