Uma experiência na China – por João Vale


Há dois anos, em 2019, recebi a proposta de vir lecionar para a China, para uma escola internacional, como professor de Educação Física. Como ávido adepto da modalidade de basquetebol, ex-praticante e treinador de formação, não podia deixar de me sentir ligado ao gosto, que sempre tive de jogar e contribuir para o desenvolvimento de jovens atletas, pelo que conciliando com a atividade profissional de docente, decidi jogar numa equipa local, da cidade onde resido e ajudar como treinador, numa “academia de formação”, a entidade pela qual são identificados os clubes. 


Passados estes dois anos e a convite do professor Mário Silva, foi-me lançado o desafio de escrever para o blogue de treinadores “Ideias para o Basquetebol”. Neste artigo, procurei relatar um pouco aquilo que foi a minha experiência e perceção, explorando as diferenças que marcam estas duas realidades distintas.

 

Uma realidade diferente

O basquetebol é possivelmente o desporto coletivo com mais praticantes na China, sendo que há um grande investimento por parte do governo. Um dos exemplos é o facto de alguns jogadores da NBA jogarem na liga chinesa, designada por CBA.  Derivado da cultura de massas e da procura que existe da modalidade no país mais populoso do mundo, a oferta para a prática é imensa. Encontro-me numa cidade pequena, perto de Shanghai, sendo que pequena significa aproximadamente 4 milhões de habitantes e perto significam 85 Km, respetivamente. Com influências de uma grande cidade, a elevada procura da prática da modalidade solicita uma resposta rápida da parte do governo local em dispor várias opções, desde escolas, pavilhões, campos de rua e até mesmo campos indoorself-service”, em que por uma pequena quantia e a opção de um cartão mensal ou anual, cada praticante pode jogar no mínimo duas horas e estender-se pelo dia todo.  Quando cheguei, no meu primeiro ano e perante a oferta para a prática com que me deparei, procurava muito este tipo de pavilhões, sendo que existe quase um por cada zona da cidade. A rotina passa por chegar, verificar o cartão na cancela e jogar o resto do tempo com os amigos. Todos os dias, de manhã à noite, a dificuldade é sempre escolher um campo vazio para aquecer.  


Fazendo agora alusão à nossa realidade e indo um pouco ao encontro do objetivo do artigo, é evidente a diferença que existe em termos de oferta para a prática, sendo que os recursos para a expansão do basquetebol no nosso país são limitados, a começar pelos campos exteriores disponíveis e possibilidades indoor, em que cada vez que se quer jogar em pavilhão, dependemos sempre de uma certa autorização de determinada entidade ou agendamento prévio, nem sempre disponível de vaga. Em Lisboa, a oferta de campos exteriores tem vindo a crescer. Existem bons espaços, como os campos de Monsanto, que estiveram em vias de ser fechados, pela Câmara e que na minha opinião são o espaço de eleição, para a prática outdoor, em Lisboa. Há também o campo dos Olivais e a cidade universitária, entre outros. As recentes iniciativas e ideias por parte de algumas entidades como a Hoopers em crescer as possibilidades de prática e aumentar o gosto pela modalidade têm sido notórias. Possivelmente, estarei a cometer um erro ao não ter em conta o tamanho da nossa população com a população chinesa, mas o que é certo é que em termos culturais, é quase mandatório que cada criança e jovem que saia da escola se desloque para um campo para jogar com uma bola debaixo do braço, um pouco à semelhança do que podemos ver nos Estados Unidos.


As academias de jovens

Na China, existem aquilo a que se chamam as “academias de treino”. Nos últimos anos, apesar do sistema político ser comunista, o sistema económico aproxima-se cada vez mais do sistema capitalista, com 119 empresas na lista das 500 maiores do mundo, e caminhando para se tornar a maior potência económica do mundo, sendo o PIB apenas superado pelo dos Estados Unidos. As academias de treino são no fundo empresas com fins lucrativos, estruturadas para aglomerar o maior número de jovens interessados, munindo-se por isso de uma grande capacidade de marketing com divulgação de marcas conhecidas, o rosto de treinadores estrangeiros e jogadores conhecidos, aliando-se ao facto do basquetebol ser uma das modalidades nacionais coletivas mais populares. Paralelamente, a China constitui-se como o maior mercado de espetadores da NBA, a seguir logicamente aos americanos, sendo o país uma forte fonte lucrativa para direitos de transmissão e compra de produtos no merchandizing. Deste modo, presenciamos um cenário diferente de Portugal e do resto da Europa, em que clubes sem fins lucrativos, de uma perspetiva global visam a formação holística do jovem atleta. Na China, as então denominadas academias de treino acabam por ser no fundo um negócio, em que a maior parte delas nem engloba a competição estruturada e organizada.

  

 A competição e o treino


Como referi anteriormente, as academias de treino muitas vezes não são orientadas para a competição de forma organizada, nem tuteladas por nenhuma entidade ou federação local, mas sim por entidades privadas. Por isso, para o desenvolvimento do jovem jogador, muitos treinadores estrangeiros são contratados para trabalhar especificamente nessas academias e colocam as seguintes questões: Como evoluir sem competição? Não treinamos para jogar mais e melhor? Não digo com isto que não existem clubes ou mesmo academias de formação na China que tenham competição organizada e também em conversa com treinadores de outras cidades e províncias, mas o formato com que mais me tenho deparado é esse.  

Apesar da aparente falta da vertente competitiva, as academias parecem focar-se mais nos aspetos individuais técnicos, como o drible, o lançamento e o passe, sendo que a evolução do jovem atleta é muito centrada em torno das skills motoras e técnicas, o que de certa forma acaba por ser o que é divulgado a nível de estratégia de marketing, em suma, a forma como o atleta executa. Tal como no futebol, os centros de treino chineses de formação têm procurado investir muito nos treinadores estrangeiros e um dos grandes objetivos passa por trazerem essa competição organizada, procurando estabelecer contactos com outras escolas e academias da mesma cidade.

Contudo, a nível sénior já são realizadas competições e torneios, a nível regional e da província, em que em cada localidade existe um clube com treinos semanais, visando a preparação dessa competição anual ou trimestral. No entanto, continua a não existir um formato competitivo estruturado, com jogos frequentes ao fim de semana, com tabela classificativa orientada por um campeonato, sendo que geralmente o torneio se realiza dentro de um período de tempo determinado pela associação local. O que marca a diferença para o nosso contexto, é que a grande percentagem de jovens chineses escolhe o basquetebol como modalidade de eleição, desde muito cedo. Não é difícil ver um jovem acompanhado de uma bola debaixo do braço, ao final do dia, para ir jogar com os amigos. Dentro deste processo, a seleção da equipa sénior para as competições locais e regionais é muito facilitada, com milhões de jovens praticantes com elevada qualidade técnica a quererem jogar nas melhores equipas.

Dentro daquilo que são os aspetos do jogo e derivado da minha experiência nas competições, com a minha equipa local, e observação de outras equipas, os aspetos táticos são pouco explorados e existem algumas limitações naquilo que é o entender do jogo, como leitura de situações do jogo, reações ao movimento ofensivo e a tomada de decisão, em que a primeira opção é quase sempre o “receber e lançar”, o dito “catch and shoot”. A defesa também não é um aspeto muito trabalhado, sendo sempre privilegiada a defesa zona a meio-campo. Normalmente, o defensor direto é quase sempre batido em situações de 1x1 e após o pick and roll. No entanto, a eficácia de lançamento é bastante elevada, pois reforçando o que disse, há um grande foco nos aspetos individuais ofensivos e um grande volume de treino no lançamento.


Processos de seleção a nível de escolas


Derivado da grande taxa de natalidade e população jovem, no país, o processo de seleção de jovens talentosos e com potencial para integrarem as seleções e as melhores equipas é naturalmente diferente do que estamos habituados. Num país com cerca de 1,4 bilião de habitantes, superior à população da Europa, para qualquer modalidade é de todo impossível a observação dos atletas por intermédio de cada associação e província, sendo um processo que poderia mesmo levar anos. Deste modo, a escolha dos jovens mais aptos é feita através das escolas, em que todos os anos, os professores de Educação Física têm de realizar testes físicos nas suas turmas, como velocidade, salto, força, agilidade, flexibilidade e resistência, sendo os resultados reportados ao Governo local, o que facilita o processo de seleção dos “escolhidos”, para integrarem determinada modalidade.

No caso do basquetebol, é fácil encontrar jovens aptos motivados para perseguirem uma carreira e esta seleção é feita desde muito cedo. Antes do verão de 2020, a minha escola teve a oportunidade de receber a seleção nacional de sub-12 feminina, para uma semana de estágio a treinar no pavilhão. As jovens meninas já estavam integradas num processo que decorria há algum tempo e todas elas tinham caraterísticas físicas impressionantes, marcadas sobretudo pela sua altura (visivelmente todas acima de 1,75m e com uma estrutura física excecional, para a idade). Todas elas já pertenciam a um sistema integrado pelo governo, para constituírem as próximas seleções, das próximas gerações.

No nosso contexto é legítimo identificar aqui o conceito de especialização precoce, ao qual chamamos “estrelas prematuras”, mas neste contexto, desde muito cedo, o governo procura encaminhar e vocacionar os jovens para o desporto, através de centros de alto rendimento e treino, sendo um orgulho para os atletas e para os pais aceitarem as demandas do governo e direcionarem o foco em perseguir uma carreira profissional. A possibilidade de haver insucesso não é fácil de aceitar e isso, por um lado, é justificado pela sociedade chinesa, em que existe uma constante necessidade de sobrevivência para ter sucesso, competindo por um lugar, para alcançar um patamar elevado ou estatuto, possibilitando desta forma a diferenciação rápida dentro de uma população de milhões.


O que podemos retirar para a nossa realidade?

 

Finalizo o artigo por reforçar o importante papel das escolas e a sua ligação com a captação dos jovens pelos clubes e academias.  Dissociando aqui a finalidade económica exclusiva de lucrar com a angariação, é importante destacar a preponderância que as escolas e nomeadamente a Educação Física possuem no processo de seleção dos jovens, o “scouting”, que embora seja feito precocemente neste contexto, há que ressalvar o enorme contributo que o desporto escolar pode e deve dar aos clubes e academias, no recrutamento de jovens atletas, para as diferentes modalidades. A escola é e sempre será a via de eleição, que melhor poderá motivar e encaminhar os jovens atletas, para a prática desportiva e assegurar aos clubes um número significativo de praticantes. 

A China terá o potencial em população e investimento para ser uma das maiores potencias desportivas mundiais, mediante uma boa orientação e definição das guidelines, um processo consciente que tem vindo a surgir nos últimos anos, com a maior procura de informação do exterior, por parte dos agentes desportivos e investimento nos treinadores estrangeiros, para obter o Know how.  O desporto com competição organizada ainda se apresenta como uma grande lacuna, perante uma nação com um número exuberante de províncias e cidades, no que toca à gestão de cada escola e cada academia. Contudo, visando uma perspetiva de aperfeiçoamento e crescimento, com as diretrizes certas, sem dúvida que este potencial é incontestável.  

Podemos certamente fazer mais e melhor, e apesar da nossa população ser reduzida, comparativamente, também apresentamos um grande handicap no processo de recrutamento e captação de jovens para o basquetebol, nomeadamente na oferta, o que chamamos “saber vender a modalidade”. Há que melhorar o sistema e comunidade escolar, reforçando os alicerces que se estabelecem entre o clube e a escola, desenvolver o desporto escolar, oferecendo várias alternativas à prática, o que se estende não só ao basquetebol, mas a todas as modalidades. Enquanto aqui a escola acaba pelas 15 horas, para que os alunos se possam dirigir à sua “ASA” (After School Activity), continuamos a ter horários escolares que impossibilitam o jovem estudante de conseguir conciliar o percurso académico com o desportivo, inclusive aulas a terminarem às 18h30, com apenas tempo para terminar os trabalhos de casa, jantar e dormir. Este ciclo vicioso acaba por se tornar uma dicotomia nos objetivos que se tem para aumentar o índice de atividade física no jovem.

Grato sobretudo por ter tido a feliz oportunidade de trabalhar na China como professor de Educação Física e treinador de jovens, uma experiência que certamente não será esquecida.

Agradeço ao professor Mário Silva a oportunidade de escrever este artigo de opinião, espero que traga algum contributo para o que possa ser uma reflexão e comparação entre dois contextos completamente distintos.

 

por João Vale

25/04/2021



 

  



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