COMO É QUE OS TREINADORES APRENDEM – por José Curado

 

(Nota prévia – O presente artigo foi escrito com base numa comunicação apresentada pelo autor, aos máximos responsáveis pelo Desporto dos países membros da União Europeia, durante a Presidência da Estónia, no 2º semestre de 2017 – Tallinn, 2017.07.14)

 

INTRODUÇÃO – As preocupações com a formação dos treinadores têm vindo a ocupar um lugar cada vez mais relevante tanto no domínio da investigação, como no de muitas instituições e profissionais, que lidam com o problema nos terrenos da prática e atribuem à organização desta um papel decisivo na mesma.

Perceber cada vez de forma mais clara como é que os treinadores aprendem e, para além disso, como é que eles aprendem melhor, têm-se constituído como preocupações alargadas.

É destas preocupações que vamos procurar dar conta nas linhas que se seguem.

 

I – As FONTES DE APRENDIZAGEM dos treinadores são muitas e variadas. Vamos a elas:


a) CURSOS FORMAIS CERTIFICADOS – Trata-se, ao fim e ao cabo, do conjunto de ações de formação, quer para obter um dos quatro graus, quer contínua, que os treinadores são obrigados por lei a frequentar com aproveitamento, para obterem e manterem a cédula, que lhes permite exercerem legalmente a sua atividade. Os cursos formais certificados têm sido alvo de críticas. Embora algumas sejam perfeitamente pertinentes e devam ser tidas em atenção pelas entidades responsáveis, fundamentalmente pela entidade reguladora (no nosso País o Instituto Português do Desporto e da Juventude), as críticas ignoram, no essencial, dois aspetos de grande relevância, a saber:

1 – A formação certificada é uma das componentes decisivas para que se vá criando um sentido de carreira; e

2 – Ela é obrigatória para que se venha a obter o reconhecimento da atividade do treinador como profissão regulada.

Ignorar estes dois relevantes requisitos é contribuir ativamente para que ser treinador não seja definitivamente reconhecida como uma profissão superior e socialmente respeitada – ainda há um longo caminho a percorrer até que seja uma realidade indiscutível, mas convém que “não percamos o norte”, ou seja, que a bússola se mantenha a apontar na direção do FUTURO.

 

b) INTERAÇÃO COM COLEGAS, ATLETAS E PERITOS – Mesmo que, muitas vezes, nem nos demos conta da influência que aqueles que nos rodeiam exercem sobre nós, a verdade é que a mesma é incontornável. Quem é que já não encontrou resposta para um problema que o atormentava na sequência de trocas de impressões com outros treinadores? Quem é que ainda não foi surpreendido pela resposta, nada esperada, mas eficaz, dada por um atleta numa situação nova no treino ou na competição? Quem é que ainda não foi tocado pelos saberes de um Psicólogo do Desporto ou pela expertise de um especialista em Biomecânica?

 

c) MENTORIA INFORMAL A mentoria é normalmente entendida como uma boa ferramenta para ajudar no desenvolvimento profissional e consiste basicamente em uma pessoa mais experiente ajudar outra menos experiente a aprender. É algo que pode ocorrer apenas ocasionalmente, fora de um programa de formação estruturado, e normalmente a pedido da pessoa menos experiente.

 

d) MENTORIA FORMAL – Ao contrário da situação anterior, aqui existe uma ação deliberada, consubstanciada num programa de mentoria, com objetivos bem definidos e a que o aluno se submete voluntariamente. A este propósito convirá aqui fazer uma ou outra chamada de atenção:

1 – É absolutamente decisivo compreender que a relação mentor-treinador é única e irrepetível (cada treinador é um caso, algo quase completamente ignorado pelos processos de formação mais tradicionais);

2- O exercício da mentoria não se pode confundir com o tradicional processo de ensino (não se trata de “dar aulas”);

3 – Os mentores atuam fundamentalmente no sentido de ajudarem os treinadores a reconhecer e aproveitar as oportunidades de aprendizagem, mas nunca esquecendo que a iniciativa deverá pertencer sempre ao treinador.


e) APRENDER COM UM TREINADOR EXPERIENTE – Mesmo que seja apenas através da observação daquele em ação existirá sempre algo que nos fará pensar. E se for possível conversarmos com ele tanto melhor. Felizmente são muitos os treinadores mais velhos, com anos e anos de experiências nas “frentes de batalha”, que se mostram disponíveis para ajudar os “novatos”.

 

f) EXPERIÊNCIA COMO ATLETA – São muito raros os treinadores que não foram praticantes da modalidade em que treinam. Assim sendo, e embora haja quem treine quando ainda é atleta, situação que francamente não se recomenda, quando alguém decide abraçar a condução do processo de treino já passou por uma carreira enquanto atleta:

- Que terá sido mais ou menos longa;

- Em que se atingiram níveis elevados ou muito elevados (atleta internacional … olímpico) ou, pelo contrário, se ficou apenas pela mediania;

- Em que se viveram momentos de grande realização, satisfação e alegria e outros de muita frustração e tristeza;

- Em que foram treinados por treinadores que os influenciaram positiva e/ou negativamente. Existem, aliás, muitos relatos das histórias de vida de muitos treinadores nos quais eles revelaram que a decisão de se tornarem também treinadores foi profundamente influenciada por aqueles.

Seja por uma ou outra razão, ou por várias delas, as nossas vivências enquanto praticantes influenciarão sempre a nossa visão sobre o modo como encaramos o processo de treino e as relações que estabelecemos com os atletas que treinamos.

 

g) PRÁTICA SUPERVISIONADA – Tal como, por exemplo, aquela que ocorre durante o Estágio indispensável para concluir o curso de treinadores de Grau I, sendo que o mesmo implica a presença de um orientador da entidade formadora, bem como outro do clube onde o Estágio tem lugar, de modo a garantir que o Estagiário possa contar com o apoio de pessoas mais experientes.

 

h) CLINICS, SEMINÁRIOS, CONFERÊNCIAS … - São tudo variantes da formação não formal que fazem parte da cultura própria de cada modalidade desportiva. E em que os treinadores marcam presença, normalmente com o objetivo de descobrirem um ou outro pormenor, um ou outro exercício ou solução, que os ajudem a melhorar as suas práticas e as relações com os atletas que treinam.

 

i) OBSERVAÇÃO DE OUTROS TREINADORES – Para além daquilo que já foi referido mais atrás na alínea e) recomenda-se também que observemos treinadores de outras modalidades em ação. Bem sabemos que não é uma prática muito frequente, até porque o tempo escasseia muitas vezes. Mas, tal como nós na nossa modalidade também eles nas suas sentem problemas e procuram soluções e, quem sabe, se não descobriram já uma que nos tem escapado?

 

j) REFLEXÃO GUIADA – Refere-se ao processo de que falaremos mais abaixo em II e à necessidade de estruturarmos o processo de treino, que nos leve a criar o hábito de refletir. A criação deste hábito poderá começar por exercícios muito simples e acessíveis e ser completada por formação especializada.

 

k) TENTATIVA E ERRO NA PRÁTICA – Trata-se seguramente do mais velho método de aprendizagem utilizado pelo Homem. E não é pelo facto de já ser muito antigo que perdeu utilidade. Quantas e quantas vezes, no nosso processo de treino, não fomos já surpreendidos por situações inesperadas? E a questão é que temos os atletas ali à nossa frente a precisarem de respostas – há que tentar e ver como resulta! E quantas vezes não quisemos já experimentar uma nova solução tática e não sabemos como poderá resultar? E será que deixamos de tentar? Claro que não.

 

l) TRABALHO DE CASA (LEITURAS, VÍDEOS, INTERNET) – Se pensou que já tinha acabado enganou-se! Os treinadores que realmente se preocupam sabem bem como será importante ler aquele artigo recentemente publicado, observar o vídeo do “inimigo” em ação ou “dar uma voltinha” pela internet, para ficar a saber os últimos acontecimentos. É claro que são muitas (mais) coisas para fazer e isso levanta a questão do tempo “que não temos” e que precisamos de “inventar”. Por tudo isto, sugerimos que os treinadores frequentem um curso de gestão do tempo, se possível logo quando decidem abraçar esta complexa, mas muito gratificante atividade que é ser treinador. Esta necessidade pode até ser reforçada pelo facto de que num dos programas de formação de treinadores institucionalizado nos Estados Unidos da América esta matéria fazer parte do programa do nível inicial. O tempo deverá ser encarado como um recurso e, enquanto tal, precisa de ser bem gerido.

 

m) COMUNIDADES DE PRÁTICA – Trata-se de um conceito relativamente recente na literatura da especialidade e que se pode definir como “um conjunto de pessoas que partilham uma preocupação comum, um conjunto de problemas ou uma paixão sobre um tema e que aprofundam o conhecimento e a perícia nesta área interagindo de forma continuada”. Embora manifestando o nosso máximo respeito pela modernidade do conceito, ousamos afirmar que de há muito que já temos, no basquetebol e não só, comunidades de prática naturais. Elas são as velhas secções de modalidade existentes nos nossos clubes e às quais a definição acima se pode aplicar quase na perfeição, sendo que em muitas já é desenvolvido trabalho de comunidade muito meritório. Mas também é claro que não podemos deixar de referir e lamentar que, em muitas delas, ainda não são devidamente aproveitadas as enormes potencialidades que têm para se transformarem em comunidades de prática muito produtivas. É um passo que é preciso dar alterando tal situação. Até porque, a nosso ver, é aí, na intimidade da secção da modalidade, que se deverá refletir e discutir profundamente a elaboração de planos plurianuais de desenvolvimento dos jovens praticantes que os coloquem a salvo dos “humores” permanentemente variáveis de (alguns) treinadores, dirigentes e pais. Os jovens têm direito a um desenvolvimento harmonioso, contínuo e progressivo e a serem protegidos de soluções casuísticas, pontuais e, não raras vezes, “birrentas”. E deverá ser também aí que os jovens treinadores deverão encontrar as suas primeiras fontes de apoio.

Provavelmente existirão ainda outras fontes de aprendizagem – o processo de treino não para de nos surpreender com frequência. Convenhamos, no entanto, em que já temos aqui uma lista que dá muito que pensar.

 

II – Mas, sabe que mais? Toda esta enorme riqueza de fontes de aprendizagem de pouco valerá se não for devidamente acompanhada por um processo de AUTORREFLEXÃO devidamente estruturado. Aliás, se prestarmos um pouco de atenção à literatura da especialidade, poderemos constatar que, desde há muito, vários têm sido os autores que nos têm chamado a atenção para o seguinte:

1 – Estar durante dez anos a treinar sem refletir é simplesmente um ano de treino repetido dez vezes; e

2 - Aprender não pode ser assumido simplesmente como resultado da prática do treino. Para a aprendizagem ter lugar é indispensável que um profissional se envolva ativa e deliberadamente num processo de reflexão.

Dito isto, temos de reconhecer que não se trata de um processo fácil. De facto, encontrar tempo para refletir de modo límpido e sistemático é difícil, quando as nossas vidas são muito ocupadas e com muitas coisas que precisam de ser feitas. No entanto, a reflexão é um passo essencial para a aprendizagem através da prática. Trata-se de uma capacidade que pode ser desenvolvida e afinada – pode, portanto, treinar-se e, em resultado desse treino, transformar-se num hábito.

 

III – 70-20-10 por cento

Não é comum encontrar na literatura relacionada com a formação de treinadores a distribuição das fontes de aprendizagem por percentagens. No entanto, noutras áreas da formação profissional há investigação que aponta para que as aprendizagens se fazem fundamentalmente:

- 70% através da prática;

- 20% através de outras pessoas (conversas e networks);

- 10% através do treino formal.

Do nosso ponto de vista, mais do que nos prendermos ao rigor das percentagens, o que é realmente importante é podermos ver, uma vez mais, que a formação deverá abranger um largo espectro de fontes, sendo que a prática, devidamente estruturada e refletida, ocupa um lugar de grande relevo.

 

IV – Características dos ADULTOS enquanto APRENDIZES

- Os adultos são aprendizes voluntários;

- Têm uma vasta gama de capacidades;

- Tendem a relacionar a sua aprendizagem com as experiências anteriores;

- Aprendem devido a uma necessidade atual;

- São capazes de assumir responsabilidade pela sua própria aprendizagem.

 

V – Como é que os treinadores APRENDEM MELHOR?

Aceitando-se, tal como nós fazemos, que a formação de treinadores deve ser entendida e enquadrada na formação de adultos, podemos dizer que eles aprendem melhor quando:

- A sua experiência e competências são reconhecidas e são encorajados a refletir e apoiar-se nelas;

- Sentem a necessidade de aprender e a relevância das matérias;

- São encorajados a assumirem a responsabilidade pela sua própria aprendizagem;

- O clima é positivo e de apoio, minimiza a ansiedade, encoraja a experimentação e desafia cada indivíduo de forma adequada;

- Têm muitas oportunidades de se envolverem na prática e a aplicarem a informação ao seu próprio contexto;

- Sentem algum sucesso e recebem feedback que fortalece a sua autoconfiança;

- O modo como eles gostam de aprender é tomado em consideração e se reconhece que tal pode ser incidental (algo que acontece no decurso de uma determinada situação) e idiossincrático (peculiar e pessoal, muito íntimo, que só a própria pessoa compreende).

 

VI – TREINADORES DO ALTO RENDIMENTO

Embora esta “enorme minoria” dos treinadores que atuam nas frentes das mais altas competições nacionais, continentais, mundiais e olímpicas justifique, por si só, uma alargada e específica abordagem das suas necessidades de formação, deixamos desde já aqui uma caracterização de algumas das suas competências, as quais, por si só, revelam necessidades de formação altamente exigentes e sofisticadas. Assim, eles deverão ser capazes de:

- Desenvolver uma clara VISÃO sustentada por uma profunda FILOSOFIA;

- Terem a capacidade para verem para dentro do futuro;

- Serem capazes de simplificar a complexidade;

- Terem um plano de ação completo que deverá prever todos os pormenores que poderão interferir com a obtenção dos máximos resultados;

- Serem capazes de o rever constantemente e ajustar.

Em resumo, têm de possuir uma VISÃO que entre em linha de conta com o CONTEXTO, o AMBIENTE, o ENVOLVIMENTO, as PESSOAS, tudo enquadrado por uma sólida FILOSOFIA e VALORES.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Laal, M. & Others (2013). Continuing education: lifelong learning. Pub. Elsevier Ltd.

Mesquita, I., Coordenadora (2016). Investigação na formação de treinadores – Identidade profissional e aprendizagem. Editora FADEUP

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por José Curado

20-09-2021



 

 


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