HISTÓRIA COM “SUMO” - por João Oliveira (*)

Ontem à noite, estava a ver um dérbi de basquetebol feminino. Encontrava-me na primeira fila, no lugar imediatamente a seguir à minha direita estava um bloco de notas, que me acompanha, e depois alguns amigos. Na segunda fila, encontravam-se jovens jogadoras (leia-se pessoas que jogam). O jogo estava a ser muito equilibrado e ao mesmo tempo que o via o jogo, identificava os problemas que ambas a as equipas estavam a colocar uma à outra e as respetivas soluções, mas também imaginava outras soluções para os problemas que as equipas estavam a colocar.

A determinado momento, lembrei-me de algo que tinha pensado, já lá vão uns tempos, mas não tinha registado e como tinha o caderno mesmo ali, procurei a próxima folha em branco e desenhei essa ideia e eis que surge algo que vale a pena partilhar (tentarei fazê-lo com a máxima precisão possível).

Uma das jogadoras, que estava na 2ª fila, comentou – “acabou de desenhar uma jogada”, de imediato, virei-me para trás e disse – “não desenho jogadas, desenho conceitos” e prontamente a menina perguntou – “qual é a diferença?”.

Demorei menos de 1 segundo a responder, mas naqueles centésimos de segundo, muitas coisas a propósito foram recordadas, como por exemplo: o livro de - Mahlo, F. (1969). O Acto Táctico em Jogo. Lisboa: Compendium; uma apresentação que fiz - Oliveira, J. C. (1995). Apresentação de uma Proposta de Organização do Processo de Ensino-Aprendizagem do Bloco Metodologia e Didáctica dos Cursos de Nível I. Acção de Formação de Formadores da Escola Nacional de Basquetebol, Figueira da Foz; e um livro que escrevi - Oliveira, J. C. (2002). O ensino do Basquetebol. Gerir o presente, ganhar o futuro. Editorial Caminho.

Mas, antes do segundo terminar, respondi de forma diferente. Virei o corpo para o lado direito, o olhar para trás e perguntei-lhe – “qual é a diferença entre andar de carro ou de comboio?” e com uma fluidez própria de quem está interessada, a menina perguntou – “não estou a perceber!?!”. Mantendo o ritmo da conversa, como se fosse um jogo de ténis de mesa, devolvi – “imagina que vais fazer uma viagem do Porto para Lisboa e tens duas hipóteses, uma viajar de comboio e outra de carro, quais seriam as diferenças?”. Fez-se algum silêncio e, para ajudar, perguntei – “quando entras no comboio tens hipótese de alterar o trajeto?” e rapidamente a resposta – “não”, eu perguntei – “quando viajas de carro, podes mudar o percurso?”, a pronta resposta – “sim”, percebendo que a menina estava a tentar fazer a associação entre a resposta (comboios e carros) e a pergunta (jogadas e conceitos) e, para a facilitar disse – “quando fazemos jogadas, os jogadores estão como que dentro de um comboio, não podem alterar o trajeto, têm que se manter dentro dos carris, enquanto quando as equipas jogam por conceitos, os jogadores deslocam-se como que de carro, podem utilizar diferentes estradas para chegar a Lisboa.”

O olhar da menina de repente mudou, parecia que tinha entendido perfeitamente quer a diferença, quer o impacto dessa diferença nas pessoas que jogam e teve um comentário que me surpreendeu – “quer vir treinar a minha equipa?”.

Como esta, existem muitas histórias, mas esta tem um “sumo” que vale a pena partilhar:

  • Que é perguntando que aprendemos. Quem tem filhos deve lembrar-se daquela fase das perguntas e o muito que eles e nós aprendemos com isso;
  • Podemos sempre aprender, mesmo a ver um jogo de basquetebol;
  • Há dois tipos de jogo: o jogo dos treinadores (maquinistas / coreógrafos que consideram os jogadores marionetas) e há o jogo dos jogadores (pessoas que conduzem o seu automóvel, depois de aprenderem as regras de transito – conceitos de jogo – e terem muitas horas de condução – treino desses conceitos – com o instrutor de condução);
  • Que, por trás destes dois tipos de jogo, há uma crença diferente: os treinadores “maquinistas” que acreditam que as pessoas são coisas, objetos e que por isso as podem e devem controlar, gerir, motivar, (…), própria da era industrial; e os treinadores “instrutores” que acreditam que as pessoas são sujeitos totais e que por isso, com conhecimentos, estratégias e treino, as pessoas podem conduzir o seu próprio veículo (jogar);
  • Que ainda há muitas equipas a jogar o basquetebol dos treinadores e algumas delas apregoando que estão na vanguarda do jogo, como que 50 anos adiantados no tempo e os outros não percebendo isso, e paradoxalmente a serem guiados por uma crença que foi recurso há 200 anos.
As aplicações práticas desta história poderão ser diversas, como por exemplo, na formação de treinadores; no recrutamento de Coordenadores e de Treinadores; na coordenação de Clubes; nos treinos das equipas e no desenvolvimento das pessoas.

Uma ideia curiosa e a propósito, estou ligado ao basquetebol há 40 anos e nunca fui para um jogo de comboio! Será que de carro as equipas podiam escolher o horário e local de partida, o trajeto, as paragens, o ritmo, (…).

Quer joguem de “comboio”, quer “conduzam os carros”, as pessoas que jogam (jogadores) vão ter sempre de decidir em jogo. Portanto, a questão não é se os jogadores vão ou não decidir, mas que estrutura terão para decidir: a utilizada há 200 anos ou a contemporânea.

A decisão é sua pessoa que dirige, pessoa que treina, pessoa que joga, pessoa que … : quer utilizar a tesoura da imagem, libertar o potencial das pessoas e aceder a uma nova era?



Nota: por respeito à privacidade das pessoas, não utilizei o nome da pessoa que despoletou a conversa que aqui partilho

por João Oliveira
11-08-2019

(*) Republicação do texto original, com autorização do autor, publicado a 6-01-2019 em:
https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=2234967723385144&id=100006158145987


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