Como formar jogadores inteligentes? - por Mário Silva


Introdução:

Os jogadores inteligentes são os que têm capacidades para resolver problemas, vêm e pensam o jogo de forma clara, decidem de forma autónoma, são criativos, mantem o foco no que é importante, antecipam decisões, sabem jogar em equipa e criam muitas dificuldades aos adversários.

Ao processarem a informação, a grande velocidade, conseguem não só controlar os adversários e companheiros como também têm em conta a importância do tempo e do marcador.

O que separa um bom jogador de um grande jogador é o seu QI de basquetebol. O bom jogador só passa a ser um grande jogador quando consegue melhorar o seu QI da modalidade.
Assim, um jogador inteligente conhece e domina os aspetos mentais do jogo e está apto a tomar boas decisões.

A inteligência não está contemplada na folha da estatística, mas é determinante nas vitórias e derrotas das equipas.

Um jogador inteligente está sempre um passo à frente de todos, lê a defesa e o ataque e descobre o que vão fazer ajustando-se rapidamente.


Ao ler o livro de Johan Cruyff é fácil entender a definição jogador inteligente: 
 
 “Todos los entrenadores hablan sobre movimiento, sobre correr mucho. Yo digo que no es necesario correr tanto. El fútbol es un deporte que se juega con el cerebro. Debes estar en el lugar adecuado, en el momento adecuado, ni demasiado pronto ni demasiado tarde”,

Para Cruyff o jogador necessita não só de alta resistência física para se destacar no futebol, mas também de outras capacidades como a orientação espacial, a habilidade para calcular a velocidade de uma jogada e sobretudo concentração. Estas aptidões, somadas à capacidade de resolução de jogadas, é o que preocupa os técnicos para melhorarem os jogadores. Passou a ser conhecida como neuro-futebol, que não é mais que a utilização de elementos da neurociência para a formação de jogadores mais inteligentes.

O exemplo de Nicola Jokic

Atualmente na NBA pela capacidade atlética domina LeBron James tal como no passado o fizeram Karl Malone ou Wilt Chamberlain.

Pela inteligência sempre gostei de ver Larry Bird, Magic Johnson ou John Stockton e agora sigo com atenção Kevin Durant e o jovem sérvio Nikola Jokic (Denver Nuggets).

Larry Bird (Boston Celtics) disse um dia: “O que mais me irritava quando jogava era ter um atleta branco a defender-me. Para mim era igual se o defesa fosse vermelho, amarelo ou negro, o que eu não queria mesmo era um branco porque isso era desrespeitar o meu jogo. O basquetebol é um jogo de Afro-Americanos.”

Bird não era tão rápido nem saltava tanto como os seus adversários negros, mas era inteligente, dominava no lançamento, no passe, no conhecimento do jogo e na tomada da decisão. 
O basquetebol de Nikola Jokic (https://www.youtube.com/watch?v=sQgKvP2tsxM) e de Larry Bird (https://www.youtube.com/watch?v=3lt1x-k3QGU) caracteriza-se pela  imprevisibilidade e eficiência. Provavelmente enquanto jovens não foram sujeitos a processos de treinos lineares, e não lhes destruíram a capacidade improviso e de resposta. Algumas vezes não seguiram certamente as indicações dos treinadores e provavelmente repudiaram as práticas repetitivas de situações invariáveis nos treinos com uma estrutura mecanicista. 

Como se forma um basquetebolista inteligente?
Não é fácil opinar se o talento dos ditos jogadores inteligentes é inato, fruto do treino, ou dos dois.

Sabemos sim que a inteligência tática também se educa. Para isso nada melhor que os treinadores criarem condições para que os jogadores adquiram um conhecimento estratégico e tático do jogo que lhes permita jogar de forma inteligente e que lhes facilite a tomada decisões num meio hostil e em constante mutação.

As novas perspetivas da aprendizagem do basquetebol têm sofrido uma importante revolução com a ligação à neurociência. Os conteúdos passam a ter não só as partes técnico-táticas, motoras (condicionais e coordenativas), mas também levam em conta a parte psico-cognitiva.

Os jogadores aprendem a partir de tarefas com implicações cognitivas e sempre relacionadas com o jogo. Tendo por base as habilidades coordenativas, com as tarefas baseadas no trabalho em multiáreas (realizar diferentes tarefas de forma a obrigar a trabalhar diferentes zonas do cérebro).

O grande objetivo é formar jogadores inteligentes para o rendimento desportivo. Para isso temos de passar dos modelos estanques e fora do contexto do jogo para modelos construtivistas com base no treino cognitivo. O treino de basquetebol não faz grande sentido descontextualizado já que não terá transferência para o jogo. Assim devemos contextualizar as tarefas. Como diz o Prof. Jorge Araújo: “Treina como queres jogar”.

O Jogador como protagonista

No passado nos desportos de equipa os treinadores tinham um excesso de protagonismo e faziam quase tudo, oferecendo na maioria das vezes práticas descontextualizadas e sem significado para o jogador, com aprendizagens fora da situação real de jogo.

No treino moderno os treinadores definem os objetivos da tarefa e ajudam o jogador a encontrar o caminho para lá chegar, antecipando as ações, ficando com mais tempo para elaborar a resposta adequada. Os mecanismos visuais são os mais importantes para entender os elementos do jogo. A atenção e a antecipação são determinantes e estão ligadas ao conhecimento do jogo.

As necessidades percetivas do basquetebol (espacial, temporal e corporal) estão relacionadas com a posse da bola ou não, consigo e com os adversários e colegas de forma a obter a informação.

Sabe-se também que para que a aprendizagem seja duradoura é necessário que esta seja baseada em experiências emocionais. As emoções influenciam na perceção, atenção e concentração, memória e tomadas de decisão, rendimento físico e motivação.

O que se pede num jogo de basquetebol é que cinco jogadores resolvam problemas em cenários com grande imprevisibilidade de forma a concretizarem o objetivo do jogo: marcar cesto.

Para isso temos de deixar de ensinar a jogar de forma fechada e temos de passar a ensinar a jogar de forma inteligente tomando em conta a incerteza do jogo.

Criar incertezas

Como em todos os desportos de invasão o basquetebol é incerteza. As dimensões reduzidas do campo obrigam a tomar decisões instantâneas em função do que fazem companheiros e adversários.

O trabalho de incerteza potenciará a inteligência e a criatividade tática.

A manipulação da incerteza é o que provoca maior compromisso cognitivo no treino e por isso despertará mais emoções e aprendizagens mais significativas.

Procuramos assim novos desafios, situações supressivas e inesperadas provocando aprendizagens implícitas à própria tarefa, onde o treinador não tenha de dar informação sobre a decisão a tomar (Rivilla et al., 2018).

Com esta nova metodologia a ideia é adaptar o músculo e o cérebro à imprevisibilidade e à espontaneidade do basquetebol.

Como já referimos esta metodologia alternativa é baseada no jogo.

Devemos também aumentar a complexidade percetiva para isso temos de aumentar o número, velocidade e tempo exposição aos estímulos.

Por outro lado, devemos usar estratégias de inibição com elementos de distração, estímulos inesperados e troca de papéis.

Do mesmo modo devemos realizar exercícios que apelem à atualização da memória de trabalho (por exemplo uso de duas bolas), tendo grande flexibilidade cognitiva (outras soluções para um problema motor, diferentes meios técnico-táticos).

O basquetebol não é um jogo simples porque temos de coordenar a tomada de decisão dos cinco jogadores. Daí a procura dos jogadores e de um jogo inteligente que leva em conta não só a fase de execução, na tomada da decisão, mas também a fase anterior da perceção. Só com uma melhoria da leitura percetiva podemos conseguir jogadores mais inteligentes, rápidos e com capacidade de antecipação.

O treino mudou
Com a aposta na neurociência também o treino do basquetebol mudou. O treino atual concentra a sua atenção no enriquecimento das habilidades cognitivas. A ideia é incluir um estímulo cognitivo apropriado que provoque uma sobre estimulação no jogador em cada tarefa do treino.

As aprendizagens associativas, construtivas e com modelos técnicos descontextualizados estão hoje ultrapassadas e o que impera é o treino cognitivo e contextual.

Estas alterações são naturalmente controversas e mantenho a opinião que os conceitos podem ser complementares. Mas uma coisa é certa tanto nos modelos técnicos como nos táticos, o processo gira à volta do treinador e do seu conhecimento.

Nos exercícios fechados o jogador apenas tem uma solução, um caminho.

O desenho das tarefas vai exigir ao treinador esforço e desafio antes e durante o treino e perde muito do controle do mesmo, deve observar, analisar e corrigir. Quanto mais aberta a tarefa menos filas teremos, menos jogadores estáticos e menos rotações complexas.

Tive recentemente oportunidade de trabalhar com um jovem treinador (David Pascual) que segue a denominada Escola da Catalunha. Por outro lado, o meu amigo Toni Carrilo ofereceu-me recentemente o seu último livro: El entreno. Esto es Minibásquet. Sigo também, na net, o catalão Gabo Loaiza Pérez (https://twitter.com/gaboloaizaperez) e o canadiano Chris Oliver (https://basketballimmersion.com).
Em comum todos eles utilizam a neuro ciência para ajudar na melhoria técnica dos jovens atletas e para a formação treinadores.
A escola tradicional dos Sérvios e Russos, que faziam da técnica individual (1x0) o fator determinante, está algo desajustada. Creio, contudo, que isto não significa que os exercícios de repetição, ou menos abertos, devam ser eliminados. Podem e devem ser complementares.

O treino integral não se limita ao fortalecimento do físico e da técnica individual.  Por isso, na estrutura das equipas de elite, além dos treinadores é comum a participação de psicólogos e neurocientistas. Assim, para conseguirem a transferência do treino para o jogo, os treinadores têm de construir tarefas que reproduzam ou simulem as condições reais da competição numa aprendizagem baseada na resolução de “Situações -problema”. As tarefas abertas predominam sobre os exercícios fechados (mais “tradicionais”).
Caraterísticas do jogador inteligente

Os jogadores inteligentes têm em comum algumas caraterísticas antropométricas, genéticas e contextuais:
  • Serem ambidextros e com uma bagagem motriz rica;
  • Terem notáveis capacidades para tomar decisões;
  • Responderem bem às incertezas;
  • Conseguirem assumir o risco com naturalidade, integrado num processo de crescimento e melhoria;
  • Estarem dispostos a treinar e competir durante 10 anos de forma intensa, constante e planificada;
  • Gostam apaixonadamente do seu desporto;
  • Estão dispostos a sacrificar seu ego individual pelo coletivo.


O inato não chega, pois, para chegar ao rendimento. A quantidade e a qualidade das práticas são fundamentais. Um jogador inteligente tem uma representação mental da atividade diferente do jogador “normal”.


Os que seguiam o jogo no passado  bem se lembram das ações do Carlos Lisboa  ( https://www.youtube.com/watch?v=lBK68ytXgck    , quem não viu aconselho que aproveite vale a pena  ), e os que o  seguem agora a LPB  encontram o pequeno José Barbosa (Oliveirense ) sem grande potencial físico mas que interpreta muito bem o papel referido .

O que têm em comum estes atletas inteligentes?  Muito talento e uma vasta gama de recursos técnicos, que lhes permite executar com rapidez, precisão e coordenação assombrosas pese o facto de a maioria não ter um físico descomunal.

O basquetebol atual atingiu uma nova dimensão. O treino técnico é outro e está diferente do modelo tradicional das repetições de 1x0. Une recursos técnicos, qualidades físicas, perceção, tomada de decisões e execução no âmbito competitivo… e parece que funciona.

O que devem os exercícios contemplar?

Com a nova metodologia devemos ter em conta na criação dos exercícios o seguinte:

1. A realidade do jogo:
         Normal
         Cones /Portas
         1x1 defesa dá estímulos…visuais /sonoros

2. Decisões de ação (defensiva) e reação (ofensiva)

3. Cesto ou transição até meio campo

4. A surpresa (incerteza): 2x1…1x2...2x2…3x3

5. O Jogo em superioridade temporal
         Superioridade, inferioridade, igualdade numérica 1x1:
         Handicap ataque
         Handicap defesa

6. A Tarefa prévia
Rodas cognitivas 2x0…1x1 DDM 3x0…3x3 Handicap
Trabalho coordenativo + Trabalho técnico
Elementos condicionais (Físicos + Técnicos)

7. A Comunicação

8. A Integração de vários fundamentos. 2/3 Esforços/Decisões

9. O Jogo nos dois campos…até marcar

10. O Jogo sem bola 

Os treinadores preparam assim os jogadores para as caraterísticas do jogo atual.

Um exemplo prático

Consideremos a titulo de simples exemplo o trabalho de 1x1 a partir da tomada de decisão.
O conceito tático é simples: atacar o cesto para receber a bola com o defesa em situação de “handicap“ em perseguição, procurando usar as ferramentas técnicas adequadas à situação.
A ideia é incluir um estimulo cognitivo apropriado que provoque uma sobre estimulação no jogador em cada tarefa do exercício.
Se o atacante falhar o lançamento ataca para o outro cesto e jogam 1x1 em todo o campo (1x0x1 meio campo …1x1 campo inteiro).
Poderíamos ainda incrementar a dificuldade do exercício colocando mais um defensor, dentro do semicírculo de não-carga, o que iria aumentar o número de tomadas de decisão.
Para integrar o trabalho multiárea poderíamos dar a este último defensor também uma bola de modo que o defensor teria que levar a cabo um trabalho bilateral, onde o foco de atenção seria não só defender como também controlar a sua bola. 

Reformular metodologias e conteúdos

No passado recente lecionei na boa companhia do Prof. Teotónio Lima, Prof. Jorge Araújo, Eng. Adriano Baganha, Prof. Olímpio Coelho, todos eles referências do melhor que se fazia no basquetebol português, e muitos outros os cursos de nível 2 e 3. No presente apenas me pedem para lecionar no nível 1, mas não é por isso que deixo de fazer o que sempre fiz:  ensinar.

Estou, pois, em boa posição para afirmar que é tempo de reformular conteúdos dos cursos de treinadores, acertar com os preletores dando lugar a quem tem mais trabalho e capacidades para a função.

Não podemos querer ter jogadores inteligentes se continuarmos a ensinar à “moda do século passado”.
Também aqui temos de acertar rapidamente o passo.


por Mário Silva

22-05-2019














#desporto #basquetebol #portugal #basquetebolportugues #estrategia #cerebro #jogadoresinteligentes #ideiasparaobasquetebol