Basquetebol: Formação do passado ao presente ou Formação com propósito – por António Pereira

Parte 1

A afirmação da formação portuguesa

- Um percurso que temos a obrigação de não esquecer

 

Um pouco de história

No início dos anos 70, tomei contacto com o basquetebol, num liceu de Coimbra, iniciando a prática federada da modalidade quase de imediato.

No verão de 1973, a Associação Académica de Coimbra (AAC) contratou um jovem treinador, emergente no panorama desportivo português, de seu nome Jorge Araújo. Entretanto, Adriano Baganha regressou a Coimbra, juntando-se a José Manuel Almeida, Apolino Teixeira e Carlos Portugal, técnicos igualmente conceituados e conhecedores do jogo, com este último a treinar a formação masculina e a equipa sénior feminina, nesta área com resultados relevantes.

No verão de 74 e após a revolução do 25 de Abril, foi criado o Clube Académico de Coimbra (CAC), para o qual transitou parte da estrutura técnica, permanecendo apenas Carlos Portugal na AAC, da qual também saiu para o Olivais FC (Olivais de Coimbra), passados alguns.

Por via destas decisões dos técnicos e dirigentes e das condicionantes políticas, para o CAC, mudou-se a maior parte dos jogadores da formação – sub-14, sub-16 e sub-18 – e da equipa sénior masculina. Nesses tempos, não havia escalões de formação no setor feminino e só se mudou um número reduzido de atletas.

No CAC, todos se treinavam sob as ordens/orientações de Jorge Araújo e Adriano Baganha, seu adjunto (juvenis, juniores e seniores masculinos), enquanto iniciados e infantis trabalhavam diretamente com Apolino Teixeira e José Manuel Almeida coordenados por J. Araújo.

Todos os atletas desse grupo, faziam parte da mesma equipa de trabalho.

Todos treinavam os mesmos conteúdos, sendo que os objetivos eram claros.

Os atletas juvenis – atualmente sub-16 – treinavam e jogavam no seu escalão e no seguinte.

Os atletas juniores – sub-18 – treinavam e jogavam no seu escalão e na equipa sénior.

Os atletas juvenis treinavam e jogavam no seu escalão e em jogos/torneios particulares até alinhavam pela equipa sénior. Na altura, não havia dupla subida de escalão etário.

O espírito de pertença ao grupo era grande, todos faziam parte da mesma equipa.

Os valores, a atitude e a cultura de exigência eram bem difundidas, assimiladas e aceite pelos atletas.

Era um grupo de atletas – do qual eu fazia parte – orgulhosos dos resultados e do trabalho que se fazia dentro do campo e da relação entre os membros do grupo.

Mas isso só foi possível pela imensa paixão pelo basquetebol, respeito pelo grupo, pelos amigos, pela vontade de crescer através do basquetebol e por termos pessoas que nós sentíamos que contribuíam para nós sermos melhores pessoas e jogadores. Éramos e ainda somos amigos.

Essa paixão terá tido o seu início na AAC, aquando do início da prática e especialmente dos jogos que se realizavam no pavilhão do Estádio Universitário de Coimbra, onde era normal fazer-se fila para se entrar, 2 horas antes do início do jogo.

O Ambiente era magnifico, o ruído era ensurdecedor, os adeptos levantavam-se a cada cesto convertido pela AC. A equipa treinada pelo “teórico” (sua alcunha) Alberto Martins fazia o publico vibrar e, num pavilhão quase sempre a abarrotar, os estudantes e não só agradeciam os momentos que nos eram oferecidos. Os jogadores seniores serviam de modelos para os jovens e os estrangeiros faziam-nos sonhar com a sua habilidade e mestria na execução técnica. Henderlaine, Doover, Kit Jones, Sanford, e outros deixaram em nós e não só as suas marcas, que hoje ainda retemos na memória.

A equipa de juvenis começou o seu trabalho após o fim do campeonato de então, por volta de junho de 1974, realizando uma digressão a Madrid, Espanha, após o final do ano letivo.

Os resultados foram maus. Regressámos com o sentimento de que não gostamos das derrotas, nem do nosso desempenho.

Para alterar esse sentimento, passámos a treinar quatro vezes por semana, em alguns períodos cinco vezes e, nas férias, treinávamos todos os dias de manhã e à tarde. Houve férias, por exemplo, da Páscoa, que chegámos a treinar de manhã, à tarde e jogávamos à noite, no mesmo dia.  

Treinámos ao sol e à chuva – quando o treino era de caráter físico, tinha como espaço o estádio, a rua ou a mata. Mas também treinámos no cimento e noutro tipo de pisos nada aconselháveis. O importante era treinar! E o melhor possível, dentro dos condicionalismos.

Alguns dos horários de treino eram péssimos: das 21.30 horas às 23.00 horas, implicando que chegássemos a casa depois das 23.30 horas e em alguns casos até mesmo perto da 1:00 hora da manhã. Também havia treinos às 7:00 horas da manhã, antes das aulas, no período de setembro, quando se iniciava o ano letivo.

Mas ninguém faltava ao treino! E só não cumpriu o seu percurso académico quem não quis ou por motivos de força maior.

Ao fim de pouco tempo, aquilo que os espanhóis nos tinham imposto, passamos nós a impor às equipas portuguesas. Defendendo HxH campo inteiro ou defesa zona campo inteiro (1.2.2 ou 1.2.1.1); defesa zona meio-campo 1.3.1 e, por vezes, defesas mistas. As vitórias e a confiança começaram a fazer parte da cultura desse grupo, numa atitude de procura da melhoria de forma contínua.

Embora no verão de 1977 tenha havido saídas por opções pessoais, pois viviam-se tempos conturbados na sociedade portuguesa, as raízes basquetebolísticas já se encontravam plantadas e bem agarradas à terra, pelo que o sucesso das diferentes equipas era já uma realidade e a sua afirmação inevitável.

Naquele tempo, os atletas não permitiriam um retrocesso na qualidade do trabalho e na exigência e, o novo treinador Carlos Silva respeitou a nossa cultura e acrescentou o seu cunho pessoal de fazer as coisas, o que se traduziu na vitória de dois campeonatos nacionais de juniores.

Comandados por Apolino Teixeira, os juvenis (sub-16) foram campeões nacionais por três (3) vezes. Entretanto, para dar espaço aos sub-16, a nossa equipa que tinha subido de escalão (para juniores, sub-18) foi vice-campeã uma vez e duas vezes campeã nacional de juniores. A equipa sénior masculina, que começou o seu percurso na terceira divisão, foi campeã desse nível de competição, foi igualmente campeão da segunda divisão no ano seguinte e afirmou-se, sem problemas, na época posterior, na denominada 1ª divisão, o mais alto escalão do basquetebol português de então. Foi sempre a subir, como era de esperar, aproveitando os atletas da sua formação.

Começando igualmente do zero, sendo que do seu plantel havia jogadores que tinham deixado de jogar uns tempos antes, a equipa sénior feminina foi campeã nacional da 2.ª divisão e, no ano seguinte, da 1.ª divisão. Dois em dois. Grande feito para as raparigas lideradas por Jaiminho Rubenstein.

Na seção de basquetebol do CAC existia um bom ambiente e as pessoas também conviviam fora do basquetebol, muitas vezes na sede do CAC, mas não só. Os membros da equipa feminina foram polo agregador no que diz respeito a esse espírito de convívio e de relacionamento entre as pessoas. Raros foram, porém, os casos de namoro entre membros das equipas masculinas e femininas dos diversos escalões, o que só reforça a naturalidade de como se desenvolveram as amizades e o ambiente vivido entre rapazes e raparigas, entre mulheres e homens. O que nos unia era o basquetebol. Procurávamos ter um bom ambiente entre todos.

Começámos, pois, um clube do zero, mas com uma estrutura técnica, de dirigentes e jogadores comprometidos em obter resultados. Foi uma viagem maravilhosa de grandes momentos, mas também de algumas tristezas.

Quando este ciclo chegou ao fim, conseguimos identificar cerca de 41 jogadores que tinham passado pela AAC e CAC e que jogavam no campeonato da 1.ª divisão masculina. Nem todos tinham nascido em Coimbra, mas os que vieram para Coimbra, de uma forma ou outra, foram bem acolhidos (dentro do que era possível) e o que ali fazíamos era aliciante para o seu desenvolvimento pessoal.

Muitos atletas foram internacionais dos diversos escalões de formação, sub-16, sub-18 e de seniores masculinos.


Este programa iniciado na AAC e prosseguido no CAC suporta uma frase de uma realidade do mundo desportivo que já usei noutros textos:

- UMA ORGANIZAÇÃO DESPORTIVA ou UM CLUBE SÓ PODE MELHORAR DE DUAS FORMAS:

  • Por A ENTRADA DE CAPITAL FINANCEIRO QUE PERMITA A CONTRATAÇÃO DE MELHORES TREINADORES E JOGADORES;
  • ou por O DESENVOLVIMENTO DE JOGADORES DA FORMAÇÃO - afirmando assim a qualidade da sua formação;

Relembrando um pouco desses tempos:

  • Os clubes não tinham sustentabilidade financeira;
  • Viviam de mecenas e amigos;
  • Os atletas não pagavam quotas, mas quando assinavam a ficha de inscrição passavam a ser profissionais, assumiam um compromisso… recebendo em troca o equivalente a zero escudos (a moeda de então);
  • As equipas quase sempre treinavam em condições deficitárias: em número de horas, de material desportivo, tal como número de bolas e de equipamentos (a falta de fatos de treino no inverno era um problema), e das condições das instalações desportivas;
  • Mas todos queriam estar junto da equipa sénior, ver os jogos da equipa e todos, no fundo, ambicionavam chegar à equipa sénior, nem que fosse por um dia;
  • Os jogadores da equipa sénior eram os seus ídolos. Os números das camisolas eram escolhidos consoante os seus atletas preferidos e alguns até imitavam os seus gestos e movimentos característicos;
  • Os mais velhos passavam os conhecimentos;
  • E aceitavam ser mestres, orientadores, tutores, coaching, a terminologia depende da cultura dos diversos países e dos tempos;
  • Eram vistos como pessoas conhecedoras e experientes;
  • Os treinadores no início da sua atividade, e não só, sugavam os conhecimentos de bom grado, porque a regra de que são precisas 10 mil horas para se ser um especialista era tida em conta. No fundo, ninguém é especialista ou um expert sem mais nem menos. É preciso muito estudo, muitas tomadas de decisão, muitos erros cometidos e muito trabalho desenvolvido.

O Clube Académico de Coimbra decidiu que a forma de se valorizar como clube era o de DESENVOLVER JOGADORES e AFIRMAR a sua FORMAÇÃO NO MEIO BASQUETEBOLÍSTICO.

Ainda bem que o fez. Tenho a certeza que contribuímos para um basquetebol de melhor qualidade nos anos 70 e 80 e muitos ficaram no basquetebol em diversas funções. Mas, o que ficou para sempre foi a paixão e o amor pelo basquete e pelos amigos.

Mas mais importante do que os resultados foi o de ter contribuído para a preparação e sucesso de cada um na sua vida pessoal e profissional, bem como a paixão pelo basquetebol.

Obrigado a todos os colegas, treinadores, dirigentes e outros que permitiram que jogássemos basquetebol.


por António Pereira

05/12/2021






António Pereira, é um ex-jogador e ex-treinador de basquetebol, tendo desenvolvido a função de scouting durante vários anos. É licenciado em Comunicação Organizacional com as especialidades de Comunicação de Marketing e Comunicação de Relações Públicas, Mestre em Marketing e Comunicação e escreve sobre Gestão do Desporto, Marketing e Comunicação do Desporto no blog https://apbasketball.blogspot.com/ e https://ideiasparaobasquetebol.blogspot.com/ entre outros.

 

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