Tática, Sistemas e Organização – por João Oliveira

Há um problema, que tem sido enfrentado por todos, ao longo de séculos.

Que problema é esse e quem o tem enfrentado?

O problema é o da ordem ou organização e tem sido abordado teoricamente, por filósofos, matemáticos e demais cientistas e, na prática, por professores, treinadores, líderes, gestores e organizações.

É ou não verdade que um professor tem de organizar a turma, de forma a ensinar, que um treinador necessita de organizar a sua equipa, para jogar, que um gestor deve organizar a empresa ou o líder de uma equipa cirúrgica tem de a organizar (distribuir tarefas e interagir) para operar?

Portanto, a questão não é se temos de dar ordem ou organizar, mas sim como dar ordem ou organizar.

Iremos abordar esta questão na perspetiva dos treinadores. Contudo, a todo o momento pode-se fazer a analogia com professores, líderes e gestores.

No caso dos treinadores, recordo-me que quando fui pela primeira vez convidado para ser treinador e, antes do primeiro treino, pensar em “como vou organizar a equipa?” e esta questão não foi colocada apenas dessa vez. No início de cada época desportiva ou durante a época desportiva, neste último caso, quando a época estava a correr mal ou quando desejava melhorar ainda mais, recorrentemente “tropeçava” com esta questão – como dar ordem ou organizar a equipa?”

Comecei pela tática. Os dicionários definem-na como a forma planeada de fazer algo (“Tactic,” n.d.-a), método de utilizar forças em combate (“Tactic,” n.d.-b) ou uma ação ou método planeado e usado para atingir um objetivo específico (“Tactic,” n.d.-c). Segundo Matvéiev (1986, p. 146) a “tática desportiva é a arte de condução da lenta luta desportiva” e engloba todos os métodos subordinados a uma ideia e a um plano, para a concretização do objetivo da competição. Portanto, a tática refere-se à forma, aos métodos, às ações subordinadas a uma ideia ou a um plano, para conduzir, no caso, a competição de forma a concretizar um objetivo. Isto é, quando um treinador pensa na forma, nos métodos e nas ações para conduzir a equipa e os jogadores na competição, ele está a pensar na tática. A tática está associada à ideia ou, melhor, à subordinação a uma ideia e, por isso, está dependente de uma ideia (estratégia), mas também de um plano. Assim sendo, como dar ordem, organizar ou conduzir a equipa em competição?

Ao tentar aprofundar a resposta a esta questão, encontrei duas perspetivas para este desafio.

Primeira, em termos gerais, Descartes resolveu este problema separando qualquer problema na maior parte de elementos possíveis e Galileo reduzindo fenómenos complexos em partes e processos elementares. Ambas as perspetivas consideravam a comparação do todo com as máquinas feitas pelos homens, o que promoveu uma conceção mecanicista, aditiva e quantitativa do todo.

Partindo desta perspetiva, quando fui convidado pela primeira vez para ser treinador, pensei e comportei-me exatamente assim. Pensei nas partes da equipa, como se poderiam encaixar, tal como uma máquina e, depois, esperei que funcionassem como uma máquina “oleada”. Contudo, a realidade não só NÃO comprovou esta ideia mecanicista de dar ordem ou organizar um todo, como também provocou imensos e intensos problemas. Por exemplo, pense-se na revolução industrial, nas máquinas e nas pessoas ou equipas como máquinas e poderemos encontrar a lógica controladora do chefe, a dependência ou contradependência nas relações entre colaboradores e liderança, (…). Como é as pessoas se sentem quando são tratadas como peças ou partes de uma máquina e por isso são controladas? O que lhes apetece fazer nestas circunstâncias? É correto tratar as pessoas e dar ordem ou organizar o todo através desta lógica mecanicista? Em o “O Erro de Descartes”, Damásio (2005) consciencializa-nos para as limitações desta lógica.

Por diversas vezes (Oliveira, 2021, 2022), tentei destacar as consequências de dar ordem ou organizar as equipas segundo esta perspetiva, recorrendo a analogias como as marionetas ou jogar sobre carris. Antes, já tinha alertado para a diferença entre o jogo dos treinadores e o jogo dos jogadores (Oliveira, 2001).

A segunda perspetiva foi construída a partir da ideia Darwiniana de seleção natural. Neste caso, a ordem ou organização é produto do acaso e do meio ambiente e a respetiva adaptação (seleção natural) é responsável pela eleição do que hereditariamente vantajoso ou desvantajoso, o mecanismo da evolução. Percebo que um treinador que treine “barcelonas” e “reais madrids” possa ter a tendência para reforçar estas ideias de organização, se assim pensar e se ganhar mais do que perde. Contudo, há pelo menos duas situações a considerar.

Por um lado, o jogo e a vida estão repletas de incertezas, situações aleatórias, mudanças, mas como lidar com elas? Se na primeira parte, a resposta é tratar as pessoas como peças de uma máquina, agora e nesta perspetiva, a solução é deixar a ordem ou organização nas “mãos” do acaso

Por outro lado, esta noção do todo a partir da soma das partes esteve na génese dos “galácticos” – adição das melhores partes de uma equipa – e nem por isso essa junção se tornou na melhor equipa. Como pessoalmente ainda não treinei “barcelonas” ou “reais madrids” e como valorizo e respeito a liberdade e capacidade de escolha, esta ideia nunca me foi reforçada, bem pelo contrário e, na sua essência, contraria um aspeto básico da táticaé planeada, não deixada ao acaso.

Para não só sobreviver, mas também desenvolver e transformar as equipas, recusei sempre a ideia da ordem ou organização como produto da lógica mecanicista ou do acaso. Por isso, nenhuma destas duas respostas à questão – “como dar ordem ou organizar a equipa” – foi satisfatória para mim.

Será que existia outra perspetiva, para além das duas referidas? As partes são um elemento fundamental para perceber e organizar o todo, mas será que há mais algum elemento a considerar, para perceber e organizar o todo? – questionei-me.

Para Smuts (1927), a natureza apresenta uma tendência para a criação de “todos” – holismo – que considera que o todo resulta das suas partes, mas é mais do que a sua soma. Inspirado pela ideia de uma melodia poder ser composta por tons muito diferentes, von Ehrendels (1937) formulou o conceito de qualidade Gestalt, para o aparecimento de uma nova categoria ou todo, que é mais do que a soma das partes. Imagine-se a diferença de som entre um conjunto de instrumentos a tocar individualmente e depois em simultâneo, por exemplo numa orquestra. O som é igual ou será que a melodia só acontece com os vários instrumentos a tocar pelo menos em simultâneo? Nesta perspetiva, as unidades ou partes implicam a existência de um todo maior e essas unidades não são percebidas do mesmo modo por diferentes indivíduos ou pelo mesmo indivíduo em diferentes momentos. Ou seja, existem totalidades e a sua perceção muda (Koffka, 1999; Wertheimer, 2001).

Embora Aristóteles tenha estimulado a ideia de “o todo é mais do que a soma das partes”,  Lewin (2006) desenvolveu a teoria de campo e destacou que o todo não era igual ou maior do que a soma das suas partes, mas que o todo é diferente da soma das suas partes. Por exemplo, considerando A e B partes do todo, “A+B” não é simplesmente “(A+B)”, mas sim um terceiro e novo elemento “C”, ou seja, CA+B, porque C possui características próprias. Cada uma das partes tem significado em si mesma, mas consideradas em conjunto, o significado pode mudar (Oliveira, 2012). Assim, do mesmo modo que a junção de dois átomos de hidrogénio com um átomo de oxigénio não resulta em hidrogénico mais oxigénio, mas num terceiro e novo elemento, a água, também a junção de partes num todo, por exemplo pessoas, formam um novo elemento, equipa ou organização, com características diferentes das partes.

Isto levou-me a outra questão - O que é que forma esse todo?

Para perceber e organizar o todo, necessitamos de conhecer ambos, as partes e as relações entre as partes (von Bertalanffy, 1972). Ou seja, os indivíduos pela sua interação formam um novo elemento (Le Bon, 2001). Portanto, o que forma o novo elemento é a interação entre as partes. Isto representa um salto da lógica mecanicista, reducionista, aditiva e quantitativa, para uma lógica holística, relacional, interativa e qualitativa, onde as relações causais foram substituídas por relações dinâmicas – pela interação (Lewin, 1935).

Para ver melhor a importância da interação, pensei numa bicicleta desmontada em peças ou partes. A lógica aditiva pressupõe que a adição das peças ou partes da bicicleta resulte na bicicleta. Pode resultar na bicicleta? Sim e Não. Não, se as partes não estiverem ligadas ou interagirem de forma a formar uma bicicleta. Para que essas partes formem uma bicicleta, é necessária uma determinada interação entre essas partes, por exemplo que as rodas se liguem no sítio certo, etc. Sem as ligações ou interações corretas entre as peças de uma bicicleta, será que o resultado, o todo, seria uma bicicleta?

Nesta linha de pensamento, von Bertalanffy (1968) desenvolve a Teoria Geral dos Sistemas (General System Theory), que se concentra na organização que determina o sistema, nas relações entre as partes que as ligam ao todo, que formam o todo independentemente da substância concreta dos elementos, e ainda destaca que os sistemas trocam matéria com o ambiente ou envolvimento, como todos os sistemas vivos fazem (von Bertalanffy, 1972). Nesta lógica, Arrow, McGrath e Berdahl (2000), ao verem os grupo como sistemas abertos, complexos, adaptativos e dinâmicos, consideram quer as interações entre os membros, quer entre o grupo e o contexto. A abertura é consequência das trocas entre os sistemas; a complexidade resulta da existência de diferentes variáveis; a adaptação deriva das trocas, nos dois sentidos e ao longo do tempo, entre os indivíduos e o grupo, entre o grupo e outro grupo, entre o grupo e a organização e entre o grupo e o contexto e a vários níveis, membros individuais, grupo como sistema e contexto; e a dinâmica resulta da mudança ao longo do tempo (Arrow et al., 2000).

Nesta medida, ao considerarmos a questão - como dar ordem ou organizar uma equipa passou a haver pelo menos três aspetos a considerar:

  • As partes ou elementos – lógica mecanicista, reducionista, aditiva e quantitativa – numa equipa de Basquetebol poderão ser os jogadores;
  • A interação ou relação entre as partes - lógica holística, relacional, interativa e qualitativa – o tipo de interação que os jogadores estabelecem entre si e que forma a equipa;
  • A interação entre o todo e o ambiente - lógica holística, relacional, interativa e qualitativa – o tipo de interação que a equipa estabelece com o contexto, por exemplo, com os problemas provocados pelos adversários.

Por exemplo, quando pensamos em jogadas para organizar o ataque, não deixamos de pensar em sistemas, que consideram as partes ou elementos, mas que negligenciam quer a interação entre as partes, os ajustamentos que os jogadores necessitam de fazer em função dos colegas de equipa, quer a interação entre o todo e o ambiente ou contexto, como por exemplo o tipo de defesa da equipa adversária.

Como podemos dar ordem ou organizar as equipas considerando quer a interação entre os colegas de equipa, quer a interação com a equipa adversária?

Substituindo os fios da marioneta ou os carris por estradas ou os robôs por pessoas. Isto significa passar das “jogadas” ou sistemas fechados para os conceitos ou sistemas abertos de forma a organizar o aleatório e inesperado quer da interação entre colegas de equipa, quer dos adversários. Neste último caso, continuamos a falar de sistemas, mas abertos. O curioso é que tradicionalmente, os treinadores organizam a defesa ou o ataque em superioridade numérica com conceitos (sistemas abertos). Contudo e paradoxalmente, quando organizam o ataque em igualdade numérica são tentados a utilizar jogadas (sistemas fechados).

Por esta altura, estava perante uma questão central quanto ao dar ordem ou organizar a equipa, no caso desportiva, mas poderia pensar em qualquer tipo de equipa: em função de sistemas fechados ou em função de sistemas abertos?

Qual terá sido a minha escolha? Qual é a sua escolha?

Quais poderão ser as aplicações práticas desta ideia? São muitas, por exemplo, que perspetiva segue qualquer organização de formação de quadros (treinadores, líderes ou gestores) ou que perspetiva escolhem os coordenadores ou treinadores de clubes ou seleções distritais ou nacionais para darem ordem ou organizarem as suas equipas?

 

Referências

 

Arrow, H., McGrath, J. E., & Berdahl, J. L. (2000). Small Groups as Complex Systems: Formation, coordination, development and adaptation. California: Sage Publications, Inc.

Damásio, A. (2005). O Erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano (24a). Mem Martins: Publicações Europa-América, Lda.

Koffka, K. (1999). Principles of Gestalt Psychology. London: Routledge.

Le Bon, G. (2001). The crowd: a study of the popular mind. Ontario: Batoche Books.

Lewin, K. (1935). A Dynamic Theory of Personality: Selected papers. New York: McGraw-Hill Book Company, Inc.

Lewin, K. (2006). Field Theory in Social Science: Selected theoretical papers. In D. Cartwright (Ed.), Resolving Social Conflicts & Field Theory in Social Science (Fourth, pp. 155–382). Washington, DC: American Psychological Association.

Matvéiev, L. P. (1986). Fundamentos do treino desportivo. Lisboa, Portugal: Livros Horizonte.

Oliveira, J. C. (2001). O ensino do Basquetebol. Gerir o presente, ganhar o futuro. Editorial Caminho.

Oliveira, J. C. (2012). Contributos da Construção e dos Estudos de Validação de uma Escala de Avaliação das Fases de Desenvolvimento dos Grupos, para a Compreensão e Investigação dos seus Processos. Universidade do Porto. Retrieved from https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/67701

Oliveira, J. C. (2021). História com “Sumo.” In J. C. Oliveira & M. Silva (Eds.), Ideias para o Basquetebol: Juntos Vamos Mais Longe (pp. 165–168). Monee, IL, USA: Independently published.

Oliveira, J. C. (2022). Qual é a melhor “tática”? In J. C. Oliveira & J. Curado (Eds.), Basquetebol com ideias (pp. 183–197). Wroclaw, Poland: Ideias para o Basquetebol.

Smuts, J. C. (1927). Holism and Evolution (2nd ed.). London: The MacMillan Company.

Tactic. (n.d.-a). Retrieved September 1, 2022, from https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/tactic

Tactic. (n.d.-b). Retrieved September 1, 2022, from https://www.merriam-webster.com/dictionary/tactic

Tactic. (n.d.-c). Retrieved September 1, 2022, from https://www.britannica.com/dictionary/tactic

von Bertalanffy, L. (1968). General Systems Theory: foundations, development, applications. New York: George Braziller.

von Bertalanffy, L. (1972). The History and Status of General Systems Theory. Academy of Management Journal, 15(4), 407–426. Retrieved from http://10.0.9.3/255139

von Ehrenfels, C. (1937). On Gestalt Qualities. Psychological Review, 44, 521–524.

Wertheimer, M. (2001). Gestalt Theory. In W. D. Ellis (Ed.), A Source Book of Gestalt Psychology. Oxon, Great Britain: Routledge.


por João Oliveira

11-09-2022








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