Há um problema, que tem sido enfrentado por todos, ao longo de séculos.
Que problema é esse e quem o tem
enfrentado?
O problema é o da ordem ou
organização e tem sido abordado teoricamente, por filósofos, matemáticos e
demais cientistas e, na prática, por professores, treinadores, líderes,
gestores e organizações.
Portanto, a questão não é se temos
de dar ordem ou organizar, mas sim como dar ordem ou organizar.
Iremos abordar esta questão na
perspetiva dos treinadores. Contudo, a todo o momento pode-se fazer a analogia
com professores, líderes e gestores.
No caso dos treinadores, recordo-me
que quando fui pela primeira vez convidado para ser treinador e, antes do
primeiro treino, pensar em “como vou organizar a equipa?” e esta questão
não foi colocada apenas dessa vez. No início de cada época desportiva ou
durante a época desportiva, neste último caso, quando a época estava a correr mal
ou quando desejava melhorar ainda mais, recorrentemente “tropeçava” com esta
questão – “como dar ordem ou organizar a equipa?”
Comecei pela tática. Os
dicionários definem-na como a forma planeada de fazer algo (“Tactic,” n.d.-a), método de utilizar forças em combate (“Tactic,” n.d.-b) ou uma ação ou método planeado e usado para
atingir um objetivo específico (“Tactic,” n.d.-c). Segundo Matvéiev (1986, p. 146)
a “tática desportiva é a arte de condução da lenta luta desportiva” e
engloba todos os métodos subordinados a uma ideia e a um plano,
para a concretização do objetivo da competição. Portanto, a tática
refere-se à forma, aos métodos, às ações subordinadas a uma ideia ou a um plano,
para conduzir, no caso, a competição de forma a concretizar um objetivo.
Isto é, quando um treinador pensa na forma, nos métodos e nas ações para conduzir
a equipa e os jogadores na competição, ele está a pensar na tática. A tática
está associada à ideia ou, melhor, à subordinação a uma ideia e, por isso, está
dependente de uma ideia (estratégia), mas também de um plano. Assim sendo, como
dar ordem, organizar ou conduzir a equipa em competição?
Ao tentar aprofundar a resposta a
esta questão, encontrei duas perspetivas para este desafio.
Primeira, em termos gerais,
Descartes resolveu este problema separando qualquer problema na maior parte de
elementos possíveis e Galileo reduzindo fenómenos complexos em partes e
processos elementares. Ambas as perspetivas consideravam a comparação do todo com
as máquinas feitas pelos homens, o que promoveu uma conceção mecanicista,
aditiva e quantitativa do todo.
Partindo desta perspetiva, quando
fui convidado pela primeira vez para ser treinador, pensei e comportei-me
exatamente assim. Pensei nas partes da equipa, como se poderiam encaixar, tal
como uma máquina e, depois, esperei que funcionassem como uma máquina “oleada”.
Contudo, a realidade não só NÃO comprovou esta ideia mecanicista de dar ordem
ou organizar um todo, como também provocou imensos e intensos problemas. Por
exemplo, pense-se na revolução industrial, nas máquinas e nas pessoas ou
equipas como máquinas e poderemos encontrar a lógica controladora do chefe, a
dependência ou contradependência nas relações entre colaboradores e liderança,
(…). Como é as pessoas se sentem quando são tratadas como peças ou partes de
uma máquina e por isso são controladas? O que lhes apetece fazer nestas
circunstâncias? É correto tratar as pessoas e dar ordem ou organizar o todo através
desta lógica mecanicista? Em o “O Erro de Descartes”, Damásio (2005)
consciencializa-nos para as limitações desta lógica.
Por diversas vezes (Oliveira, 2021, 2022), tentei destacar as
consequências de dar ordem ou organizar as equipas segundo esta perspetiva,
recorrendo a analogias como as marionetas ou jogar sobre carris. Antes,
já tinha alertado para a diferença entre o jogo dos treinadores e o jogo dos
jogadores (Oliveira, 2001).
A segunda perspetiva foi
construída a partir da ideia Darwiniana de seleção natural. Neste caso, a ordem
ou organização é produto do acaso e do meio ambiente e a respetiva
adaptação (seleção natural) é responsável pela eleição do que hereditariamente
vantajoso ou desvantajoso, o mecanismo da evolução. Percebo que um treinador
que treine “barcelonas” e “reais madrids” possa ter a tendência para reforçar
estas ideias de organização, se assim pensar e se ganhar mais do que perde.
Contudo, há pelo menos duas situações a considerar.
Por um lado, o jogo e a vida
estão repletas de incertezas, situações aleatórias, mudanças, mas como lidar
com elas? Se na primeira parte, a resposta é tratar as pessoas como peças de
uma máquina, agora e nesta perspetiva, a solução é deixar a ordem ou
organização nas “mãos” do acaso.
Por outro lado, esta noção do
todo a partir da soma das partes esteve na génese dos “galácticos” – adição das
melhores partes de uma equipa – e nem por isso essa junção se tornou na melhor
equipa. Como pessoalmente ainda não treinei “barcelonas” ou “reais madrids” e
como valorizo e respeito a liberdade e capacidade de escolha, esta ideia nunca me
foi reforçada, bem pelo contrário e, na sua essência, contraria um aspeto
básico da tática – é planeada, não deixada ao acaso.
Para não só sobreviver, mas
também desenvolver e transformar as equipas, recusei sempre a ideia da ordem ou
organização como produto da lógica mecanicista ou do acaso. Por
isso, nenhuma destas duas respostas à questão – “como dar ordem ou organizar
a equipa” – foi satisfatória para mim.
Será que existia outra
perspetiva, para além das duas referidas? As partes são um elemento
fundamental para perceber e organizar o todo, mas será que há mais algum
elemento a considerar, para perceber e organizar o todo? – questionei-me.
Para Smuts (1927),
a natureza apresenta uma tendência para a criação de “todos” – holismo –
que considera que o todo resulta das suas partes, mas é mais do que a sua soma.
Inspirado pela ideia de uma melodia poder ser composta por tons muito
diferentes, von Ehrendels (1937)
formulou o conceito de qualidade Gestalt, para o aparecimento de uma
nova categoria ou todo, que é mais do que a soma das partes. Imagine-se a
diferença de som entre um conjunto de instrumentos a tocar individualmente e
depois em simultâneo, por exemplo numa orquestra. O som é igual ou será que a
melodia só acontece com os vários instrumentos a tocar pelo menos em
simultâneo? Nesta perspetiva, as unidades ou partes implicam a existência de um
todo maior e essas unidades não são percebidas do mesmo modo por diferentes
indivíduos ou pelo mesmo indivíduo em diferentes momentos. Ou seja, existem totalidades
e a sua perceção muda (Koffka, 1999; Wertheimer, 2001).
Embora Aristóteles tenha
estimulado a ideia de “o todo é mais do que a soma das partes”, Lewin (2006)
desenvolveu a teoria de campo e destacou que o todo não era igual ou
maior do que a soma das suas partes, mas que o todo é diferente da soma das
suas partes. Por exemplo, considerando A e B partes do todo,
“A+B” não é simplesmente “(A+B)”, mas sim um
terceiro e novo elemento “C”, ou seja, C≠A+B, porque C
possui características próprias. Cada uma das partes tem significado em si
mesma, mas consideradas em conjunto, o significado pode mudar (Oliveira, 2012). Assim, do mesmo modo que a junção de dois
átomos de hidrogénio com um átomo de oxigénio não resulta em hidrogénico mais
oxigénio, mas num terceiro e novo elemento, a água, também a junção de partes
num todo, por exemplo pessoas, formam um novo elemento, equipa ou organização, com
características diferentes das partes.
Isto levou-me a outra questão - O
que é que forma esse todo?
Para perceber e organizar o todo,
necessitamos de conhecer ambos, as partes e as relações entre as
partes (von Bertalanffy, 1972). Ou seja, os indivíduos pela
sua interação formam um novo elemento (Le Bon, 2001).
Portanto, o que forma o novo elemento é a interação entre as partes. Isto
representa um salto da lógica mecanicista, reducionista, aditiva e
quantitativa, para uma lógica holística, relacional, interativa e
qualitativa, onde as relações causais foram substituídas por relações
dinâmicas – pela interação (Lewin, 1935).
Para ver melhor a importância da
interação, pensei numa bicicleta desmontada em peças ou partes. A lógica aditiva
pressupõe que a adição das peças ou partes da bicicleta resulte na bicicleta.
Pode resultar na bicicleta? Sim e Não. Não, se as partes não estiverem ligadas
ou interagirem de forma a formar uma bicicleta. Para que essas partes formem
uma bicicleta, é necessária uma determinada interação entre essas partes,
por exemplo que as rodas se liguem no sítio certo, etc. Sem as ligações ou
interações corretas entre as peças de uma bicicleta, será que o resultado, o
todo, seria uma bicicleta?
Nesta linha de pensamento, von
Bertalanffy (1968)
desenvolve a Teoria Geral dos Sistemas (General System Theory), que se
concentra na organização que determina o sistema, nas relações entre as partes
que as ligam ao todo, que formam o todo independentemente da substância
concreta dos elementos, e ainda destaca que os sistemas trocam matéria
com o ambiente ou envolvimento, como todos os sistemas vivos fazem (von Bertalanffy, 1972). Nesta lógica, Arrow, McGrath
e Berdahl (2000),
ao verem os grupo como sistemas abertos, complexos, adaptativos e dinâmicos,
consideram quer as interações entre os membros, quer entre o grupo
e o contexto. A abertura é consequência das trocas entre os
sistemas; a complexidade resulta da existência de diferentes variáveis;
a adaptação deriva das trocas, nos dois sentidos e ao longo do tempo,
entre os indivíduos e o grupo, entre o grupo e outro grupo, entre o grupo e a
organização e entre o grupo e o contexto e a vários níveis, membros
individuais, grupo como sistema e contexto; e a dinâmica resulta da
mudança ao longo do tempo (Arrow et al., 2000).
Nesta medida, ao considerarmos a questão
- como dar ordem ou organizar uma equipa passou a haver pelo menos três
aspetos a considerar:
- As partes ou elementos – lógica mecanicista, reducionista, aditiva e quantitativa – numa equipa de Basquetebol poderão ser os jogadores;
- A interação ou relação entre as partes - lógica holística, relacional, interativa e qualitativa – o tipo de interação que os jogadores estabelecem entre si e que forma a equipa;
- A interação entre o todo e o ambiente - lógica holística, relacional, interativa e qualitativa – o tipo de interação que a equipa estabelece com o contexto, por exemplo, com os problemas provocados pelos adversários.
Por exemplo, quando pensamos em
jogadas para organizar o ataque, não deixamos de pensar em sistemas, que
consideram as partes ou elementos, mas que negligenciam quer a interação entre
as partes, os ajustamentos que os jogadores necessitam de fazer em função dos
colegas de equipa, quer a interação entre o todo e o ambiente ou contexto, como
por exemplo o tipo de defesa da equipa adversária.
Como podemos dar ordem ou
organizar as equipas considerando quer a interação entre os colegas de equipa,
quer a interação com a equipa adversária?
Substituindo os fios da marioneta
ou os carris por estradas ou os robôs por pessoas.
Isto significa passar das “jogadas” ou sistemas fechados para os
conceitos ou sistemas abertos de forma a organizar o aleatório e
inesperado quer da interação entre colegas de equipa, quer dos adversários.
Neste último caso, continuamos a falar de sistemas, mas abertos. O curioso é
que tradicionalmente, os treinadores organizam a defesa ou o ataque em
superioridade numérica com conceitos (sistemas abertos). Contudo e
paradoxalmente, quando organizam o ataque em igualdade numérica são tentados a
utilizar jogadas (sistemas fechados).
Por esta altura, estava perante
uma questão central quanto ao dar ordem ou organizar a equipa, no caso
desportiva, mas poderia pensar em qualquer tipo de equipa: em função de sistemas
fechados ou em função de sistemas abertos?
Qual terá sido a minha escolha?
Qual é a sua escolha?
Quais poderão ser as aplicações
práticas desta ideia? São muitas, por exemplo, que perspetiva segue qualquer
organização de formação de quadros (treinadores, líderes ou gestores) ou que
perspetiva escolhem os coordenadores ou treinadores de clubes ou seleções
distritais ou nacionais para darem ordem ou organizarem as suas equipas?
Referências
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por João Oliveira